A Grande Máquina
Peça teatral em quatro atos
Texto de Roberto A. Martins
Curitiba, 1977
 
Personagens:  Professor Asclépio 
Mecânico Yuri 
Marta 
Anita Iza 
Rômulo 
Ana 
Nelson 
Mestre 
Banqueiro 
Jograis 
Loucos

PRIMEIRO ATO

PRÓLOGO
 
[Vão entrando em cena os três Jograis e anunciado a peça a grandes gritos, conforme as falas abaixo, enquanto os atores indicados passam pelo palco, fazem uma mesura e se retiram:]
1° Jogral Atenção, senhores! Venham ver a sensacional mudança que não transforma nada! [passa o professor Asclépio]
2° Jogral Presenciem a luta pela construção do mais inútil dos aparelhos! [passa Marta]
3° Jogral Venham viver conosco o drama do marido traído que admira seu rival! [passa o Mecânico Yuri]
1° Jogral Vejam o louco que traz a lucidez à aldeia perdida! [passa Rômulo]
2° Jogral Extraordinário e lindo romance de amor de uma jovem que abandona o lar! [passa Anita-Iza]
1° Jogral Vai começar "A Grande Máquina"!
3° Jogral A que horas vai começar?
2° Jogral Agora mesmo.
3° Jogral Mas é preciso dizer exatamente a que hora, minuto e segundo!
1° Jogral Para que isso?
3° Jogral Para que o público saiba quando viu a peça. Se não souberem, ficarão confusos quando alguém lhes perguntar: "Quando foi que você viu 'A Grande Máquina'?"
2° Jogral Não basta o dia? [grita:] Hoje é sábado, dia 20 de outubro de 1977!
3° Jogral Não. É necessário ser preciso.
1° Jogral São 21 horas, 14 minutos e 12 segundos.
3° Jogral Mas a peça não está começando.
2° Jogral Quando eu bater palmas, a peça começará! E serão 21 horas, 16 minutos e 30 segundos do dia 20 de outubro de 1977 nesta cidade de Curitiba!
  [Bate palmas; ficam em silêncio, esperando. Entram Nelson e Ana, e empurram ou carregam os Jograis para fora de cena. Em seguida, voltam e a peça se inicia.]
PRIMEIRO ATO – CENA 1
 
[No início, há 4 caixotes em cena, de diferentes tamanhos. Um deles parece impossível de ser carregado por um homem sozinho. Em cena estão Ana e Nelson. Ana está auscultando e examinando um caixote médio. Nelson está assentado sobre o maior.]
Ana Não escapa um sussurro, um grito, uma canção. Não parece haver riso ou dor aí dentro.
Nelson São apenas peças. Nada completo.
Ana Certamente os mataram antes de encaixotar. A vida não entraria nessas caixas. Está tudo aí?
Nelson Sim. Os superiores nos ordenaram que transportemos esses fardos. E neste envelope estão as instruções que levaremos.
Ana É uma longa caminhada até lá. E o que estaremos levando para o meio daquele povo? A luz, ou a morte?
Nelson Como encontraremos o caminho? Não há estrada que conduza à aldeia. Nem animal que pudesse percorrer toda a trilha até aquele mundo. Pelo menos, nenhuma besta que eu conheça.
Ana Precisaria ser capaz de atravessar a nado o lago escuro... de arrastar-se e rasgar suas costas em túneis estreitos... escalar montanhas de pedras brilhantes e que queimam como o sal... Nenhuma criatura poderia levar nas costas esses pacotes até lá.
Nelson Exceto nós. Foi por isso que nos deram essa ordem. Nenhum outro animal poderia cumprir essa missão.
Ana E nós? Podemos? Veja: são quatro monstros.
  [A partir deste instante, passam a examinar o peso dos caixotes e a tentar carregá-los, enquanto prossegue o diálogo.]
Ana [continuando] Como enfrentá-los? Precisamos de ajuda. E se os pássaros e os peixes não podem nos auxiliar, devemos apelar para outros homens.
Nelson Repartir o trabalho, e sermos desonrados perante todos? Nada disso. Vê: eu consigo carregar um destes grandes.
Ana Mas cada um teria que levar dois. É impossível.
Nelson Poderíamos equilibrar um deles na cabeça, e carregar outro nos braços.
Ana Mesmo se eu conseguisse erguê-los, como suportar a caminhada de vários dias? Como atravessar os túneis e esgueirar-me sob árvores baixas? Como escalar os montes sem usar as mãos?
Nelson Não sei. [pausa] Levemos somente uma parte, agora, e depois o restante.
Ana Ir duas vezes até lá? Seria loucura! Se escaparmos com vida da primeira vez, devemos passar o resto de nossas existências agradecendo aos deuses!
Nelson Mas poderíamos levar uma parte, e depois... [pausa]
Ana E depois?
Nelson E esquecer o resto. Levar só uma parte.
Ana Nelsinho, não sê doido!
Nelson Que mais podemos fazer? Não somos super-homens!
Ana E se descobrirem? Os superiores nos açoitarão e enterrarão em uma prisão sem luz.
Nelson Como poderiam saber? Eu e tu não lhes diremos. E nenhuma notícia virá da aldeia para fora. Não há comunicação entre eles e o resto do mundo.
Ana  Mas eles saberão que só levamos uma parte. Irão conferir o conteúdo dos caixotes, de acordo com as instruções do envelope. Lá deve estar descrita a máquina toda. 
Nelson  Podemos queimar o envelope. Ou modificar o seu conteúdo. Os aldeões não compreenderão. E não poderão descobrir a falha.
Ana Sinto forte atração e ao mesmo tempo pavor, por esta sua idéia!
Nelson Não há motivo para temor. Eles jamais desconfiarão. Nada sabem sobre o que lhes levamos.
Ana Mas acabaremos nos traindo, sem querer – talvez falando ao dormir. E será quase impossível fazer uma boa falsificação das instruções.
Nelson Será divertido vê-los às voltas com uma máquina incompleta, tentando montá-la. Vamos abrir o envelope, vamos ver as instruções!
Ana [auscultando um caixote] Nenhum ruído, sequer um murmúrio. Creio que não se vingará de nós. Abre o envelope, vamos ver as instruções!
  [Tudo escurece para mudança de cena.]
PRIMEIRO ATO – CENA 2
 
[Quando a luz se acende novamente, um dos caixotes menores desapareceu. Ana está sob o segundo maior caixote, Nelson está espremido entre os outros dois; suas roupas e aparência estão como antes: um pouco desarrumados, mas as roupas não estão rasgadas, nem eles feridos. Estão em cena o Mestre e o Mecânico. O Mecânico retira de dentro da roupa de Nelson o envelope.]
Mestre Abre o envelope, vamos ler as instruções!
Mecânico Obedecerei, Mestre! Sempre se deve cumprir ordens dos que estão acima de nós. Mas o que faço com esses dois?
Mestre Deixa-os, depois resolveremos.
  [Nelson sai do lugar onde estava, com movimentos bruscos. Enquanto o diálogo prossegue, Nelson ajuda Ana a sair de baixo da caixa; depois, Ana passa a pensar sobre algo que a assusta e, às vezes, emociona; e Nelson fica observando o diálogo e tudo o que o cerca, pensando em algo agressivamente e zombando do que vê; Ana está voltada para dentro, Nelson para fora.]
Mecânico Não vês que estão loucos?
Mestre E isto é novidade? Já chegou algum homem são a esta aldeia? Quem já enfrentou o pântano que nos cerca, sem enlouquecer?
Mecânico Vê os olhares deles: não gosto. Parecem-me loucos perigosos.
Mestre Não há perigo. Lê as instruções, amigo!
Mecânico Têm os olhos saltados e suas costas e braços devem estar lacerados por carregar os fardos. Não entendo como chegaram. E se os interrogássemos?
Mestre Só responderiam coisas sem sentido. Quer ver? Venham cá! [Ana e Nelson se aproximam.] De onde vieram vocês? Como chegaram até aqui? 
Nelson Eu vim de lá. [aponta para o lugar onde estava.] Cheguei aqui caminhando.
Ana Vim de um mundo onde há sombras e luz, porém muito mais trevas do que brilho. Não sei como cheguei aqui. Algo me transportou, enquanto sonhava.
Mecânico Parecem nervosos. Temo suas reações agressivas.
Mestre Nada tema. Não vês como vieram docilmente? [para os dois:] Não quero desordens aqui, ouviram? Tratem de portar-se bem. Agora, podem ir-se.
  [Ana e Nelson voltam aos lugares e pensamentos anteriores]
Mestre Vês? São crianças perfeitas.
Mecânico Se forem crianças reais, serão capazes de maldades. Mas como dizes que são crianças perfeitas, terei que aceitar que são bons.
Mestre Mostra-me logo o que o envelope contém!
Mecânico [abrindo] Há muitos papéis... Ah, uma carta! Vê, é dos superiores! [estende ao Mestre]
Mestre Estou sem óculos e sem óculos não consigo ler, portanto não posso agora ler a carta. Diz-me qual é a mensagem.
Mecânico [lendo] É estranho... enviam-nos um aparelho, desmontado, e instruções para construí-lo... não está tudo nas caixas, há coisas que eles sabem que já possuímos, ou que poderemos improvisar... deve ser este o significado da expressão: "Não enviamos aquilo que já está em vocês".
Mestre Mas o que é o presente? É a Grande Máquina que nos fora prometida? 
Mecânico É isso o que quero encontrar... Eles dizem: "Por muitas eras vossa aldeia esteve isolada do universo, e com isto deixou de participar das energias e da grande evolução cósmica. A comunicação entre nós continua difícil e nada se tem conseguido que destrua essa estagnação. Mas este aparelho quebrará as vossas barreiras, e vosso povo será colocado em união com o novo mundo".
Mestre Não entendo. É a Grande Máquina, ou não?
Mecânico Não sei... eles não dizem o nome. Talvez nas outras folhas esteja mais claro... [procura]
PRIMEIRO ATO – CENA 3
 
[Entram o Professor Asclépio e sua filha, Anita; o Professor deve ter uns 40 anos de idade, e a filha uns 20.]
Professor Bons dias, Mestre! Bons dias, senhor Mecânico! Ouvi dizerem de dois carregadores que atingiram nossa terra, e que trouxeram três volumes até cá.
Mestre Ah, Professor! Foi isso mesmo... [cumprimenta Anita] Desculpe-me, senhorita, meu entusiasmo; como está? Vê, Professor, cá estão.
  [O Mecânico, que é noivo de Anita, aproxima-se dela e lhe dá um beijo formal; depois, afasta-se e fica pensando na máquina, olhando os papéis. Anita pensa em sua vida futura, de casada. Impacienta-se com a distração do Mecânico.]
Mestre [continuando] E creio que aí dentro está a Grande Máquina que nos foi prometida!
Professor Mestre, estás a zombar de mim?
Mestre É a pura verdade, Professor – pois a verdade é sempre pura. A carta que veio com os carregadores explica o que é o aparelho.
Anita [referindo-se aos loucos] Eles não estão com fome?
Professor Bem lembrado, querida. É preciso não nos esquecermos de nossos deveres humanos para com esses que, sem o saberem, talvez nos tenham trazido a suprema felicidade. Traz-lhes algo de comer, depressa, lá de casa. [Anita sai]
Mestre Que jovem de bons sentimentos! Feliz é nosso amigo mecânico, que tem uma noiva tão cuidadosa! Jamais passará fome, mesmo que enlouqueça. Eu, confesso, quase me esquecia de alimentar esses pobres. Não por maldade, mas por distração, e também porque aqui na sede não é o que servir, e também porque não achei que tivessem necessidade pois, como vês, ficaram loucos, e também porque não é hora de refeição.
Professor Sim, era de se esperar que ficassem doidos. Senhor Mecânico, por favor, dá-me esta carta, e ajuda a noiva a dar-lhes de comer, quando ela voltar, para que não haja situações desagradáveis. Mas diz-me, Mestre: se é verdadeira essa notícia, o que faremos agora? 
  [O Mecânico lhe entrega o envelope; o Professor examina o seu conteúdo]
Mestre A carta diz que o aparelho romperá as barreiras. Não é isto o que estamos esperando?
Professor Mas quais barreiras? Quando a promessa nos foi feita, eles não foram muito claros. Sabes que discordo de tua opinião, quanto ao que eles queriam enviar-nos. 
Mestre Para mim, não há dúvidas. É a libertação que chega.
Professor Concordo com tuas palavras. Mas duvido que nossas idéias sejam iguais. De qualquer forma, cumpre-nos montar o aparelho, e verificar sua real utilidade. São só estas as instruções?
  [O Professor fica conversando, em voz baixa, com o Mestre; Anita voltou e, com o Mecânico, está alimentando Ana e Nelson]
Anita O que estes trouxeram do outro mundo?
Mecânico Três caixas, onde estão guardadas as peças para montar um aparelho que poderá revolucionar a aldeia.
Anita Que tipo de máquina pode ser assim tão importante?
Mecânico Não sei ao certo. É preciso estudar tudo direito, antes de dar uma opinião válida. Mas parece-me que será algo capaz de economizar trabalho e permitirá que tenhamos maior produção, maior rendimento, maior progresso! A carta fala nas energias que serão colocadas ao nosso alcance, graças ao aparelho.
Anita Talvez isso seja bom. Mas há outras coisas mais importantes para nós, não é?
Mecânico O que poderia ser mais importante?
Anita Bobagem... não liga. Às vezes sou muito egoísta, meus interesses são muito limitados.
  [Continuam a cuidar de Nelson e Ana; quando terminam, aproximam-se do Professor e do Mestre, que conversam:]
Professor Há muitas partes que são compreensíveis... outras usam símbolos estranhos, e há conexões que não parecem corretas, pelo que conheço...
Mestre Pelo que TU conheces... E queres criticar o grande projeto que eles nos enviaram? Eles estão muito à nossa frente!
Professor É claro. Isso não se discute. Confio plenamente na ciência que eles desenvolveram. Não pensei corretamente, quando disse que as conexões estavam erradas.
Mestre Eles confiam em nós, e não podemos deixar de ser bem sucedidos. É preciso pensar no futuro, e trabalhar duramente, até obter o resultado planejado.
Mecânico Sim, é o que faremos! Nossa aldeia demonstrará o seu valor! Construiremos essa bela máquina, muito superior a todas as outras!
Anita Será mesmo bela, esta máquina?
Professor Por favor, Anita, agora que já cuidou dos dois infelizes, vá para casa, ajudar Marta a preparar a refeição. Depois, eu irei. [Anita sai] O horário de almoço é sagrado. A repetição e o ritmo invariável estão por trás de tudo o que é bom.
Mestre Não suporto mulheres por perto quando é hora de trabalhar e pensar. São muito boas em outros momentos, mas, cá entre nós, jamais perdem sua superficialidade!
Mecânico Mas não importa. Cada um tem seu lugar. Nós somos feitos para um único papel, não para todos. Vamos nós à nossa função. 
Mestre Sim. Vamos planejar tudo, e dividir os papéis. Cada um estudará uma parte, e depois nos uniremos e construiremos o conjunto.
Mecânico Estou separando para mim aquilo que entendo: [separa algumas folhas de instruções] as engrenagens, as polias, os encaixes... o resto não me interessa.
Professor [tomando para si outras partes] Eu me ocupo da parte elétrica.
Mestre Deixem para mim a estrutura e o revestimento.
Mecânico E aquilo que sobrar, que nenhum de nós pegar? 
Professor Sobrar? Não diga asnices, caro futuro genro. Na máquina, tudo o que não for revestimento e estrutura deve ser uma parte interna. E as partes internas serão ou mecânicas, isto é, possuindo movimentos macroscópicos, ou serão elétricas, onde o importante são os movimentos invisíveis dos elétrons. Não pode haver uma outra alternativa.
Mecânico É verdade. Tão claro, não é? Ainda bem que está aqui para nos orientar.
  [Saem todos.]
PRIMEIRO ATO – CENA 4
 
[Mudança de cena: outro dia, na casa do professor. Estão em cena Marta (esposa do Professor Asclépio) e Anita. Pensam na chegada do Professor e do Mecânico. Conversam:]
Marta Creio que já está tudo pronto para o casamento, não é?
Anita Quase tudo. Até a casa está alugada, e mobiliada. O que mais poderia faltar?
Marta Mas você não parece muito contente.
Anita De fato, não compreendo o que desejo. Gosto muito dele, e será ótimo poder cuidar de sua comida, de suas roupas, e receber os seus cuidados. Mas ele é tão distante... Veja, esta máquina é muito mais importante do que eu!
Marta É verdade. Mas não sonhe coisas impossíveis. Os homens são assim, temos que aceitar tudo como é.
Anita Nem sei se ele realmente me quer, ou se apenas deseja cumprir uma obrigação. Ele e papai estão sempre adiando tudo, e nem querem conversar sobre o casamento...
  [Entram o Professor e o Mecânico]
Professor Olá, querida. Deus te abençoe, menina.
Mecânico Boa noite, dona Marta. Olá, Anita.
Marta Chegaram tarde. Trabalhando até agora? Como está o planejamento da Grande Máquina?
Professor Ora, tudo chegará ao seu desenlace. Há certas dificuldades para compreender e completar as estruturas, mas tudo caminha. Devagar se vai ao longe. Mas agora, desculpem-nos, precisamos ir até o gabinete verificar umas idéias. 
  [O Professor sai. O Mecânico se atrasa um pouco.]
Marta Eu gostaria de entender um pouco disso, para poder ajudar... Vejo que é tão importante, esse trabalho!
Mecânico Esta obra é muito complexa. Mesmo o método de trabalho exige grande clareza mental. Antes, pensávamos que três pessoas eram suficientes para estudá-la: uma trataria da parte mecânica, outra da parte elétrica, e uma terceira da estrutura e envoltório. Depois, vimos que havíamos nos esquecido que poderiam existir detalhes térmicos e hidráulicos. Então, aumentamos para 5 o número de especialistas. Pouco depois, vimos que era lógica a necessidade de outras dez pessoas – especialistas dos vários tipos de conexões existentes: elétrico-mecânica, hidráulico-térmica, e assim por diante. Tudo isso foi progressivamente compreendido, graças ao nosso Professor!
  [O Professor volta, apressado, para buscar o Mecânico]
Professor Ora, senhor Mecânico! Vais aborrecer as mulheres com todos esses detalhes!
Anita Mas é assim tão complicada, essa máquina? Não pode uma pessoa, sozinha, compreendê-la e montá-la? Sempre acreditei que as coisas realmente importantes são simples, tão simples que é até difícil explicá-las.
Professor Nada é simples. Tudo exige análise, ponderação, cálculos. O aparelho é construído por partes. Se compreendermos as partes e suas conexões, o todo será igualmente entendido. Não é lógico? Por isso, precisamos de cinco pessoas para estudar os cinco tipos de elementos, e outras dez para pesquisar as conexões.
Marta Ora, querido, não fica nervoso! Tu entendes como são os jovens, que acreditam na magia. Mas deveríamos deixar de lado por uns instantes esse assunto e tratar de algo urgente. Sabes que é preciso ir conversar com o padre e o juiz, e marcar uma data propícia para o casamento.
Professor Sim, isto é muito relevante. Mas como se pode pensar em problemas pessoais, quando o futuro da aldeia está em jogo?
Mecânico Realmente, estou ansioso à espera de nosso enlace. Mas é tempo de nos dedicarmos de corpo e alma à pesquisa do aparelho; o casamento produziria uma divisão de minha atenção, e portanto não é recomendável, agora.
Professor Sim, o casamento é importante, mas deve esperar até o fim da grande obra.
Anita Espero que essa máquina seja realmente importante. Afinal, já descobriram para que servirá?
Professor [encabulado] Bem... estamos estudando suas partes. Não é possível ter-se uma idéia global desde o princípio. Cá para mim, estou convencido de que ela será capaz de alterar a estrutura mental de quem a utilizar.
Anita Mas essa mudança será boa? Qual será essa alteração?
Professor Ainda não tenho certeza. Talvez só consigamos saber fazendo uma experiência.
Mecânico Por mim, acredito que a máquina substituirá uma parte do esforço humano. A pessoa que a utilizar não precisará mais de uma grande força para transportar-se e efetuar suas tarefas. Ela substituirá uma parte do homem.
Anita Alguns homens talvez pudessem ser totalmente substituídos por ela.
Professor Agora, se nos dão licença, iremos a meu gabinete.
Marta Claro. Não queremos atrapalhá-los.
  [Saem o Professor e o Mecânico]
Anita Sinto pena e raiva deles. Pena pelo esforço que toda a aldeia está aplicando a essa geringonça. Raiva pela estupidez dos homens, que pensam que o mundo deve parar quando se voltam para suas idéias. E se parássemos nós, as mulheres? E se eles ficassem sem ter o que comer e vestir? 
Marta Eu creio que os compreendo. É válido todo este esforço, dos que tentam ajudá-los, fabricando ou emprestando tudo o que pedem: uma ferramenta, uma engrenagem. Estão lutando pelo que acham valioso. E isto é belo. Não vês, eles quase nem dormem à noite...
Anita Mas sinto que há algo errado. Sinto que estão totalmente errados.
Marta  Eles erram, mas se corrigem. É verdade que falta um elemento essencial. A carta dizia claramente – até decorei este trecho, de tanto ouvi-los discuti-lo – "Nada se obterá sem o uso do caos".
Anita Sim, e ainda não descobriram que peça ou conexão se chama "caos". Nem sabem se é algo que veio nos caixotes, ou se é algo que deve ser obtido aqui.
Marta Pois é. Talvez a palavra esteja errada. Os nosso dicionários só trazem um significado para a palavra "caos": confusão, desordem. Talvez só falte esse tal de caos...
Anita Eles já montaram as peças várias vezes, dos modos que imaginaram, e nada se obteve.
Marta Sim, mas seu pai já classificou as posições e combinações possíveis de todas as peças. E agora, seguindo uma cadeia sistemática de alternativas, vão experimentar, passo a passo, cada uma das possibilidades. Está matematicamente provado que acabarão por ser bem sucedidos.
 
PRIMEIRO ATO – CENA 5
 
[Entram Ana e Nelson. Um deles carrega algo semelhante a uma corrente de bicicleta.]
Ana Dão licença? ... O Professor nos mandou sair do gabinete.
Marta Sim, claro.
  [Ana e Nelson brincam com a corrente]
Anita Acho que nós precisaríamos ajudar na construção da Grande Máquina. Eu, principalmente, pois vejo que sem isso não haverá casamento. Se é que tenho realmente interesse em me casar com ele...
Marta E ajudar como, querida? Não entendemos dessas coisas!
  [Entra o Mecânico, seguido logo depois pelo Professor]
Mecânico Onde estão esses dois? Ah, estão brincando com a corrente! Meu Deus, imaginem se sumissem com isto!
  [Tenta tomar; Nelson e Ana correm, não entregam]
Ana Deixa brincar! Tu tens muitas outras, e eu nada tenho!
Nelson Dá-me aqui, eu escondo!
Professor Seus moleques! Entreguem-me já isso, ou eu os levo para o hospício, para junto dos outros!
Mecânico Preciso disso. Dou-lhes outra coisa para brincarem.
Ana Precisa? Para que? Vocês não sabem onde encaixar essas coisas!
Nelson Eu sei, eu sei onde ele vai enfiar isso!
Professor Deixai já de brincadeiras!
Mecânico Pronto, peguei!
  [Toma a corrente; Ana o olha com tristeza, Nelson com raiva; Ana tira do bolso uma engrenagem e a acaricia]
Ana Diz, o que vais fazer com isto?
Nelson Tu sabes onde isto se encaixa?
Ana [mostrando] Vê: aqui há um buraco. Em que eixo ele se encaixa?
Nelson Este buraco é quadrado. Eles são tão imbecis que vão procurar um eixo quadrado para encaixar aí.
Ana Não, ele não é tão tolo assim. Sabe que é preciso enfiar aí um cilindro.
Nelson Ou um cone.
Ana Ou enfiar esferas negras como jabuticabas, que cairão uma a uma, transformadas em cerejas.
Nelson Não! Uma cenoura! Uma banana!
Ana Enquanto você não colocar seu nariz e sua língua na máquina, ela não funcionará.
Nelson Vocês dividiram as peças por suas funções, e não pelas cores. Está tudo errado. Não vêem que a seqüência de montagem é preto - branco - cor-de-pavão - vermelho ?
Ana É preciso unir o duro ao mole, o quente ao frio, o áspero ao liso...
  [Nelson salta sobre Ana e tenta tirar-lhe a roupa. Ela ri. Marta e Anita se retiram. O Mecânico consegue separar os dois.]
Mecânico O que faço com eles, senhor Professor?
Professor Devemos levá-los para o hospício. Mas antes seria conveniente bater-lhe. Não por maldade ou vingança, é claro – isso seria irracional – mas sim porque a psicologia demonstrou que o castigo evita erros futuros. Reforço negativo, você sabe.
PRIMEIRO ATO – CENA 6
 
[Entram o Mestre e o Banqueiro; o Mecânico os cumprimenta com a cabeça e sai levando Ana e Nelson.]
Mestre Boas noites. Íamos passando, resolvemos entrar.
Professor Boas noites. Estejam à vontade.
Banqueiro Desejava saber em que estágio se encontra o empreendimento da construção de nossa máquina, senhor Professor.
Professor Não muito avançado. A motivação é grande, mas as dificuldades imensas. É um projeto que exige o máximo de nossos conhecimentos científicos.
Banqueiro Mas o resultado compensará o esforço e os gastos? Toda a aldeia está desviando seu trabalho no sentido de cooperar com o projeto. Isso pode levar a sérios prejuízos econômicos e sociais, se durar muito tempo.
Professor Não se pode apressar a evolução natural das coisas. Sempre é necessário sofrer por aquilo que desejamos.
Mestre Mas dará certo vosso plano de atacar sistematicamente todas as  combinações possíveis?
Professor Era isto o que estava discutindo com o senhor Mecânico, hoje. Provei definitivamente que o plano é irrealizável. Pois exigiria um tempo total de 325 milhões, 836 mil e 420 séculos, caso empregássemos duas horas e quinze minutos na montagem de cada uma das possibilidades, interrompendo o trabalho oito horas por noite, duas horas para as refeições, e um dia e meio por semana para o repouso.
Banqueiro Mas então o projeto é absurdo! Não podemos construir nossa máquina, a não ser por milagre!
Mestre Não há milagres, senhor Banqueiro. Só ocorre o que pode ocorrer.
Professor Mas tenho outro solução. Não precisamos ir fazendo tentativas cegas. Podemos planejar racionalmente a máquina.
Mestre Podemos? Como? Este plano já não era racional?
Professor Partiremos de uma análise dos objetivos, e desenvolveremos um estudo teórico que mostrará o modo de atingir-se esse objetivo. Pronta a teoria, podemos passar à prática.
Banqueiro Mas quem, de nossa aldeia, é capaz de planejar um invento como este?
Mestre Ninguém. Se alguém fosse capaz, seria também capaz de montar as peças.
Professor Ninguém. Cada um de nós é incapaz de fazê-lo. Mas uma equipe bem coordenada, auxiliada por calculadoras automáticas, poderá ser bem sucedida.
Banqueiro É verdade, professor! Organizaremos uma grande empresa, que desenvolverá o projeto, e contará com apoio da administração local, e financiamento de nossos bancos.
Mestre A reunião de centenas de especialistas permitirá a obtenção da grande síntese.
Professor Um cronograma de trabalho fixará as etapas a serem atingidas. Começaremos com as pesquisas básicas e com a preparação de técnicos, de mão de obra especializada.
Banqueiro E os técnicos assim treinados serão, posteriormente, úteis em outros setores da aldeia!
Mestre Mas há uma pequena questão, senhor professor... Nós ainda não chegamos a um acordo sobre a utilidade do grande aparelho!
Professor Mas isso pode ser resolvido de modo lógico e científico por uma equipe de especialistas em decisões.
Banqueiro Mas tudo isso demorará muito tempo, e gastará muito dinheiro...
Mestre Mas nossos netos e outros descendentes poderão usufruir dos resultados. Quantos anos e escravos não foram sacrificados na edificação das grandes pirâmides? Mas valeu à pena, não é? E aí está o resultado, até hoje, para que o contemplemos e admiremos!
  [Desaparecem o Professor, o Mestre, o Banqueiro. Aparecem os três Jograis, com uma grande faixa ou cartazes onde se lê: "Segundo ato: O grande projeto científico-tecnológico para a construção da Grande Máquina". A peça continua, sem interrupção. ]


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