Personagens: | Professor Asclépio
Mecânico Yuri Marta Anita Iza Rômulo Ana Nelson Mestre Banqueiro Jograis Loucos |
PRÓLOGO
[Vão entrando em cena os três Jograis e anunciado a peça a grandes gritos, conforme as falas abaixo, enquanto os atores indicados passam pelo palco, fazem uma mesura e se retiram:] | |
1° Jogral | Atenção, senhores! Venham ver a sensacional mudança que não transforma nada! [passa o professor Asclépio] |
2° Jogral | Presenciem a luta pela construção do mais inútil dos aparelhos! [passa Marta] |
3° Jogral | Venham viver conosco o drama do marido traído que admira seu rival! [passa o Mecânico Yuri] |
1° Jogral | Vejam o louco que traz a lucidez à aldeia perdida! [passa Rômulo] |
2° Jogral | Extraordinário e lindo romance de amor de uma jovem que abandona o lar! [passa Anita-Iza] |
1° Jogral | Vai começar "A Grande Máquina"! |
3° Jogral | A que horas vai começar? |
2° Jogral | Agora mesmo. |
3° Jogral | Mas é preciso dizer exatamente a que hora, minuto e segundo! |
1° Jogral | Para que isso? |
3° Jogral | Para que o público saiba quando viu a peça. Se não souberem, ficarão confusos quando alguém lhes perguntar: "Quando foi que você viu 'A Grande Máquina'?" |
2° Jogral | Não basta o dia? [grita:] Hoje é sábado, dia 20 de outubro de 1977! |
3° Jogral | Não. É necessário ser preciso. |
1° Jogral | São 21 horas, 14 minutos e 12 segundos. |
3° Jogral | Mas a peça não está começando. |
2° Jogral | Quando eu bater palmas, a peça começará! E serão 21 horas, 16 minutos e 30 segundos do dia 20 de outubro de 1977 nesta cidade de Curitiba! |
[Bate palmas; ficam em silêncio, esperando. Entram Nelson e Ana, e empurram ou carregam os Jograis para fora de cena. Em seguida, voltam e a peça se inicia.] |
[No início, há 4 caixotes em cena, de diferentes tamanhos. Um deles parece impossível de ser carregado por um homem sozinho. Em cena estão Ana e Nelson. Ana está auscultando e examinando um caixote médio. Nelson está assentado sobre o maior.] | |
Ana | Não escapa um sussurro, um grito, uma canção. Não parece haver riso ou dor aí dentro. |
Nelson | São apenas peças. Nada completo. |
Ana | Certamente os mataram antes de encaixotar. A vida não entraria nessas caixas. Está tudo aí? |
Nelson | Sim. Os superiores nos ordenaram que transportemos esses fardos. E neste envelope estão as instruções que levaremos. |
Ana | É uma longa caminhada até lá. E o que estaremos levando para o meio daquele povo? A luz, ou a morte? |
Nelson | Como encontraremos o caminho? Não há estrada que conduza à aldeia. Nem animal que pudesse percorrer toda a trilha até aquele mundo. Pelo menos, nenhuma besta que eu conheça. |
Ana | Precisaria ser capaz de atravessar a nado o lago escuro... de arrastar-se e rasgar suas costas em túneis estreitos... escalar montanhas de pedras brilhantes e que queimam como o sal... Nenhuma criatura poderia levar nas costas esses pacotes até lá. |
Nelson | Exceto nós. Foi por isso que nos deram essa ordem. Nenhum outro animal poderia cumprir essa missão. |
Ana | E nós? Podemos? Veja: são quatro monstros. |
[A partir deste instante, passam a examinar o peso dos caixotes e a tentar carregá-los, enquanto prossegue o diálogo.] | |
Ana | [continuando] Como enfrentá-los? Precisamos de ajuda. E se os pássaros e os peixes não podem nos auxiliar, devemos apelar para outros homens. |
Nelson | Repartir o trabalho, e sermos desonrados perante todos? Nada disso. Vê: eu consigo carregar um destes grandes. |
Ana | Mas cada um teria que levar dois. É impossível. |
Nelson | Poderíamos equilibrar um deles na cabeça, e carregar outro nos braços. |
Ana | Mesmo se eu conseguisse erguê-los, como suportar a caminhada de vários dias? Como atravessar os túneis e esgueirar-me sob árvores baixas? Como escalar os montes sem usar as mãos? |
Nelson | Não sei. [pausa] Levemos somente uma parte, agora, e depois o restante. |
Ana | Ir duas vezes até lá? Seria loucura! Se escaparmos com vida da primeira vez, devemos passar o resto de nossas existências agradecendo aos deuses! |
Nelson | Mas poderíamos levar uma parte, e depois... [pausa] |
Ana | E depois? |
Nelson | E esquecer o resto. Levar só uma parte. |
Ana | Nelsinho, não sê doido! |
Nelson | Que mais podemos fazer? Não somos super-homens! |
Ana | E se descobrirem? Os superiores nos açoitarão e enterrarão em uma prisão sem luz. |
Nelson | Como poderiam saber? Eu e tu não lhes diremos. E nenhuma notícia virá da aldeia para fora. Não há comunicação entre eles e o resto do mundo. |
Ana | Mas eles saberão que só levamos uma parte. Irão conferir o conteúdo dos caixotes, de acordo com as instruções do envelope. Lá deve estar descrita a máquina toda. |
Nelson | Podemos queimar o envelope. Ou modificar o seu conteúdo. Os aldeões não compreenderão. E não poderão descobrir a falha. |
Ana | Sinto forte atração e ao mesmo tempo pavor, por esta sua idéia! |
Nelson | Não há motivo para temor. Eles jamais desconfiarão. Nada sabem sobre o que lhes levamos. |
Ana | Mas acabaremos nos traindo, sem querer – talvez falando ao dormir. E será quase impossível fazer uma boa falsificação das instruções. |
Nelson | Será divertido vê-los às voltas com uma máquina incompleta, tentando montá-la. Vamos abrir o envelope, vamos ver as instruções! |
Ana | [auscultando um caixote] Nenhum ruído, sequer um murmúrio. Creio que não se vingará de nós. Abre o envelope, vamos ver as instruções! |
[Tudo escurece para mudança de cena.] |
[Quando a luz se acende novamente, um dos caixotes menores desapareceu. Ana está sob o segundo maior caixote, Nelson está espremido entre os outros dois; suas roupas e aparência estão como antes: um pouco desarrumados, mas as roupas não estão rasgadas, nem eles feridos. Estão em cena o Mestre e o Mecânico. O Mecânico retira de dentro da roupa de Nelson o envelope.] | |
Mestre | Abre o envelope, vamos ler as instruções! |
Mecânico | Obedecerei, Mestre! Sempre se deve cumprir ordens dos que estão acima de nós. Mas o que faço com esses dois? |
Mestre | Deixa-os, depois resolveremos. |
[Nelson sai do lugar onde estava, com movimentos bruscos. Enquanto o diálogo prossegue, Nelson ajuda Ana a sair de baixo da caixa; depois, Ana passa a pensar sobre algo que a assusta e, às vezes, emociona; e Nelson fica observando o diálogo e tudo o que o cerca, pensando em algo agressivamente e zombando do que vê; Ana está voltada para dentro, Nelson para fora.] | |
Mecânico | Não vês que estão loucos? |
Mestre | E isto é novidade? Já chegou algum homem são a esta aldeia? Quem já enfrentou o pântano que nos cerca, sem enlouquecer? |
Mecânico | Vê os olhares deles: não gosto. Parecem-me loucos perigosos. |
Mestre | Não há perigo. Lê as instruções, amigo! |
Mecânico | Têm os olhos saltados e suas costas e braços devem estar lacerados por carregar os fardos. Não entendo como chegaram. E se os interrogássemos? |
Mestre | Só responderiam coisas sem sentido. Quer ver? Venham cá! [Ana e Nelson se aproximam.] De onde vieram vocês? Como chegaram até aqui? |
Nelson | Eu vim de lá. [aponta para o lugar onde estava.] Cheguei aqui caminhando. |
Ana | Vim de um mundo onde há sombras e luz, porém muito mais trevas do que brilho. Não sei como cheguei aqui. Algo me transportou, enquanto sonhava. |
Mecânico | Parecem nervosos. Temo suas reações agressivas. |
Mestre | Nada tema. Não vês como vieram docilmente? [para os dois:] Não quero desordens aqui, ouviram? Tratem de portar-se bem. Agora, podem ir-se. |
[Ana e Nelson voltam aos lugares e pensamentos anteriores] | |
Mestre | Vês? São crianças perfeitas. |
Mecânico | Se forem crianças reais, serão capazes de maldades. Mas como dizes que são crianças perfeitas, terei que aceitar que são bons. |
Mestre | Mostra-me logo o que o envelope contém! |
Mecânico | [abrindo] Há muitos papéis... Ah, uma carta! Vê, é dos superiores! [estende ao Mestre] |
Mestre | Estou sem óculos e sem óculos não consigo ler, portanto não posso agora ler a carta. Diz-me qual é a mensagem. |
Mecânico | [lendo] É estranho... enviam-nos um aparelho, desmontado, e instruções para construí-lo... não está tudo nas caixas, há coisas que eles sabem que já possuímos, ou que poderemos improvisar... deve ser este o significado da expressão: "Não enviamos aquilo que já está em vocês". |
Mestre | Mas o que é o presente? É a Grande Máquina que nos fora prometida? |
Mecânico | É isso o que quero encontrar... Eles dizem: "Por muitas eras vossa aldeia esteve isolada do universo, e com isto deixou de participar das energias e da grande evolução cósmica. A comunicação entre nós continua difícil e nada se tem conseguido que destrua essa estagnação. Mas este aparelho quebrará as vossas barreiras, e vosso povo será colocado em união com o novo mundo". |
Mestre | Não entendo. É a Grande Máquina, ou não? |
Mecânico | Não sei... eles não dizem o nome. Talvez nas outras folhas esteja mais claro... [procura] |
[Entram o Professor Asclépio e sua filha, Anita; o Professor deve ter uns 40 anos de idade, e a filha uns 20.] | |
Professor | Bons dias, Mestre! Bons dias, senhor Mecânico! Ouvi dizerem de dois carregadores que atingiram nossa terra, e que trouxeram três volumes até cá. |
Mestre | Ah, Professor! Foi isso mesmo... [cumprimenta Anita] Desculpe-me, senhorita, meu entusiasmo; como está? Vê, Professor, cá estão. |
[O Mecânico, que é noivo de Anita, aproxima-se dela e lhe dá um beijo formal; depois, afasta-se e fica pensando na máquina, olhando os papéis. Anita pensa em sua vida futura, de casada. Impacienta-se com a distração do Mecânico.] | |
Mestre | [continuando] E creio que aí dentro está a Grande Máquina que nos foi prometida! |
Professor | Mestre, estás a zombar de mim? |
Mestre | É a pura verdade, Professor – pois a verdade é sempre pura. A carta que veio com os carregadores explica o que é o aparelho. |
Anita | [referindo-se aos loucos] Eles não estão com fome? |
Professor | Bem lembrado, querida. É preciso não nos esquecermos de nossos deveres humanos para com esses que, sem o saberem, talvez nos tenham trazido a suprema felicidade. Traz-lhes algo de comer, depressa, lá de casa. [Anita sai] |
Mestre | Que jovem de bons sentimentos! Feliz é nosso amigo mecânico, que tem uma noiva tão cuidadosa! Jamais passará fome, mesmo que enlouqueça. Eu, confesso, quase me esquecia de alimentar esses pobres. Não por maldade, mas por distração, e também porque aqui na sede não é o que servir, e também porque não achei que tivessem necessidade pois, como vês, ficaram loucos, e também porque não é hora de refeição. |
Professor | Sim, era de se esperar que ficassem doidos. Senhor Mecânico, por favor, dá-me esta carta, e ajuda a noiva a dar-lhes de comer, quando ela voltar, para que não haja situações desagradáveis. Mas diz-me, Mestre: se é verdadeira essa notícia, o que faremos agora? |
[O Mecânico lhe entrega o envelope; o Professor examina o seu conteúdo] | |
Mestre | A carta diz que o aparelho romperá as barreiras. Não é isto o que estamos esperando? |
Professor | Mas quais barreiras? Quando a promessa nos foi feita, eles não foram muito claros. Sabes que discordo de tua opinião, quanto ao que eles queriam enviar-nos. |
Mestre | Para mim, não há dúvidas. É a libertação que chega. |
Professor | Concordo com tuas palavras. Mas duvido que nossas idéias sejam iguais. De qualquer forma, cumpre-nos montar o aparelho, e verificar sua real utilidade. São só estas as instruções? |
[O Professor fica conversando, em voz baixa, com o Mestre; Anita voltou e, com o Mecânico, está alimentando Ana e Nelson] | |
Anita | O que estes trouxeram do outro mundo? |
Mecânico | Três caixas, onde estão guardadas as peças para montar um aparelho que poderá revolucionar a aldeia. |
Anita | Que tipo de máquina pode ser assim tão importante? |
Mecânico | Não sei ao certo. É preciso estudar tudo direito, antes de dar uma opinião válida. Mas parece-me que será algo capaz de economizar trabalho e permitirá que tenhamos maior produção, maior rendimento, maior progresso! A carta fala nas energias que serão colocadas ao nosso alcance, graças ao aparelho. |
Anita | Talvez isso seja bom. Mas há outras coisas mais importantes para nós, não é? |
Mecânico | O que poderia ser mais importante? |
Anita | Bobagem... não liga. Às vezes sou muito egoísta, meus interesses são muito limitados. |
[Continuam a cuidar de Nelson e Ana; quando terminam, aproximam-se do Professor e do Mestre, que conversam:] | |
Professor | Há muitas partes que são compreensíveis... outras usam símbolos estranhos, e há conexões que não parecem corretas, pelo que conheço... |
Mestre | Pelo que TU conheces... E queres criticar o grande projeto que eles nos enviaram? Eles estão muito à nossa frente! |
Professor | É claro. Isso não se discute. Confio plenamente na ciência que eles desenvolveram. Não pensei corretamente, quando disse que as conexões estavam erradas. |
Mestre | Eles confiam em nós, e não podemos deixar de ser bem sucedidos. É preciso pensar no futuro, e trabalhar duramente, até obter o resultado planejado. |
Mecânico | Sim, é o que faremos! Nossa aldeia demonstrará o seu valor! Construiremos essa bela máquina, muito superior a todas as outras! |
Anita | Será mesmo bela, esta máquina? |
Professor | Por favor, Anita, agora que já cuidou dos dois infelizes, vá para casa, ajudar Marta a preparar a refeição. Depois, eu irei. [Anita sai] O horário de almoço é sagrado. A repetição e o ritmo invariável estão por trás de tudo o que é bom. |
Mestre | Não suporto mulheres por perto quando é hora de trabalhar e pensar. São muito boas em outros momentos, mas, cá entre nós, jamais perdem sua superficialidade! |
Mecânico | Mas não importa. Cada um tem seu lugar. Nós somos feitos para um único papel, não para todos. Vamos nós à nossa função. |
Mestre | Sim. Vamos planejar tudo, e dividir os papéis. Cada um estudará uma parte, e depois nos uniremos e construiremos o conjunto. |
Mecânico | Estou separando para mim aquilo que entendo: [separa algumas folhas de instruções] as engrenagens, as polias, os encaixes... o resto não me interessa. |
Professor | [tomando para si outras partes] Eu me ocupo da parte elétrica. |
Mestre | Deixem para mim a estrutura e o revestimento. |
Mecânico | E aquilo que sobrar, que nenhum de nós pegar? |
Professor | Sobrar? Não diga asnices, caro futuro genro. Na máquina, tudo o que não for revestimento e estrutura deve ser uma parte interna. E as partes internas serão ou mecânicas, isto é, possuindo movimentos macroscópicos, ou serão elétricas, onde o importante são os movimentos invisíveis dos elétrons. Não pode haver uma outra alternativa. |
Mecânico | É verdade. Tão claro, não é? Ainda bem que está aqui para nos orientar. |
[Saem todos.] |
[Mudança de cena: outro dia, na casa do professor. Estão em cena Marta (esposa do Professor Asclépio) e Anita. Pensam na chegada do Professor e do Mecânico. Conversam:] | |
Marta | Creio que já está tudo pronto para o casamento, não é? |
Anita | Quase tudo. Até a casa está alugada, e mobiliada. O que mais poderia faltar? |
Marta | Mas você não parece muito contente. |
Anita | De fato, não compreendo o que desejo. Gosto muito dele, e será ótimo poder cuidar de sua comida, de suas roupas, e receber os seus cuidados. Mas ele é tão distante... Veja, esta máquina é muito mais importante do que eu! |
Marta | É verdade. Mas não sonhe coisas impossíveis. Os homens são assim, temos que aceitar tudo como é. |
Anita | Nem sei se ele realmente me quer, ou se apenas deseja cumprir uma obrigação. Ele e papai estão sempre adiando tudo, e nem querem conversar sobre o casamento... |
[Entram o Professor e o Mecânico] | |
Professor | Olá, querida. Deus te abençoe, menina. |
Mecânico | Boa noite, dona Marta. Olá, Anita. |
Marta | Chegaram tarde. Trabalhando até agora? Como está o planejamento da Grande Máquina? |
Professor | Ora, tudo chegará ao seu desenlace. Há certas dificuldades para compreender e completar as estruturas, mas tudo caminha. Devagar se vai ao longe. Mas agora, desculpem-nos, precisamos ir até o gabinete verificar umas idéias. |
[O Professor sai. O Mecânico se atrasa um pouco.] | |
Marta | Eu gostaria de entender um pouco disso, para poder ajudar... Vejo que é tão importante, esse trabalho! |
Mecânico | Esta obra é muito complexa. Mesmo o método de trabalho exige grande clareza mental. Antes, pensávamos que três pessoas eram suficientes para estudá-la: uma trataria da parte mecânica, outra da parte elétrica, e uma terceira da estrutura e envoltório. Depois, vimos que havíamos nos esquecido que poderiam existir detalhes térmicos e hidráulicos. Então, aumentamos para 5 o número de especialistas. Pouco depois, vimos que era lógica a necessidade de outras dez pessoas – especialistas dos vários tipos de conexões existentes: elétrico-mecânica, hidráulico-térmica, e assim por diante. Tudo isso foi progressivamente compreendido, graças ao nosso Professor! |
[O Professor volta, apressado, para buscar o Mecânico] | |
Professor | Ora, senhor Mecânico! Vais aborrecer as mulheres com todos esses detalhes! |
Anita | Mas é assim tão complicada, essa máquina? Não pode uma pessoa, sozinha, compreendê-la e montá-la? Sempre acreditei que as coisas realmente importantes são simples, tão simples que é até difícil explicá-las. |
Professor | Nada é simples. Tudo exige análise, ponderação, cálculos. O aparelho é construído por partes. Se compreendermos as partes e suas conexões, o todo será igualmente entendido. Não é lógico? Por isso, precisamos de cinco pessoas para estudar os cinco tipos de elementos, e outras dez para pesquisar as conexões. |
Marta | Ora, querido, não fica nervoso! Tu entendes como são os jovens, que acreditam na magia. Mas deveríamos deixar de lado por uns instantes esse assunto e tratar de algo urgente. Sabes que é preciso ir conversar com o padre e o juiz, e marcar uma data propícia para o casamento. |
Professor | Sim, isto é muito relevante. Mas como se pode pensar em problemas pessoais, quando o futuro da aldeia está em jogo? |
Mecânico | Realmente, estou ansioso à espera de nosso enlace. Mas é tempo de nos dedicarmos de corpo e alma à pesquisa do aparelho; o casamento produziria uma divisão de minha atenção, e portanto não é recomendável, agora. |
Professor | Sim, o casamento é importante, mas deve esperar até o fim da grande obra. |
Anita | Espero que essa máquina seja realmente importante. Afinal, já descobriram para que servirá? |
Professor | [encabulado] Bem... estamos estudando suas partes. Não é possível ter-se uma idéia global desde o princípio. Cá para mim, estou convencido de que ela será capaz de alterar a estrutura mental de quem a utilizar. |
Anita | Mas essa mudança será boa? Qual será essa alteração? |
Professor | Ainda não tenho certeza. Talvez só consigamos saber fazendo uma experiência. |
Mecânico | Por mim, acredito que a máquina substituirá uma parte do esforço humano. A pessoa que a utilizar não precisará mais de uma grande força para transportar-se e efetuar suas tarefas. Ela substituirá uma parte do homem. |
Anita | Alguns homens talvez pudessem ser totalmente substituídos por ela. |
Professor | Agora, se nos dão licença, iremos a meu gabinete. |
Marta | Claro. Não queremos atrapalhá-los. |
[Saem o Professor e o Mecânico] | |
Anita | Sinto pena e raiva deles. Pena pelo esforço que toda a aldeia está aplicando a essa geringonça. Raiva pela estupidez dos homens, que pensam que o mundo deve parar quando se voltam para suas idéias. E se parássemos nós, as mulheres? E se eles ficassem sem ter o que comer e vestir? |
Marta | Eu creio que os compreendo. É válido todo este esforço, dos que tentam ajudá-los, fabricando ou emprestando tudo o que pedem: uma ferramenta, uma engrenagem. Estão lutando pelo que acham valioso. E isto é belo. Não vês, eles quase nem dormem à noite... |
Anita | Mas sinto que há algo errado. Sinto que estão totalmente errados. |
Marta | Eles erram, mas se corrigem. É verdade que falta um elemento essencial. A carta dizia claramente – até decorei este trecho, de tanto ouvi-los discuti-lo – "Nada se obterá sem o uso do caos". |
Anita | Sim, e ainda não descobriram que peça ou conexão se chama "caos". Nem sabem se é algo que veio nos caixotes, ou se é algo que deve ser obtido aqui. |
Marta | Pois é. Talvez a palavra esteja errada. Os nosso dicionários só trazem um significado para a palavra "caos": confusão, desordem. Talvez só falte esse tal de caos... |
Anita | Eles já montaram as peças várias vezes, dos modos que imaginaram, e nada se obteve. |
Marta | Sim, mas seu pai já classificou as posições e combinações possíveis de todas as peças. E agora, seguindo uma cadeia sistemática de alternativas, vão experimentar, passo a passo, cada uma das possibilidades. Está matematicamente provado que acabarão por ser bem sucedidos. |
[Entram Ana e Nelson. Um deles carrega algo semelhante a uma corrente de bicicleta.] | |
Ana | Dão licença? ... O Professor nos mandou sair do gabinete. |
Marta | Sim, claro. |
[Ana e Nelson brincam com a corrente] | |
Anita | Acho que nós precisaríamos ajudar na construção da Grande Máquina. Eu, principalmente, pois vejo que sem isso não haverá casamento. Se é que tenho realmente interesse em me casar com ele... |
Marta | E ajudar como, querida? Não entendemos dessas coisas! |
[Entra o Mecânico, seguido logo depois pelo Professor] | |
Mecânico | Onde estão esses dois? Ah, estão brincando com a corrente! Meu Deus, imaginem se sumissem com isto! |
[Tenta tomar; Nelson e Ana correm, não entregam] | |
Ana | Deixa brincar! Tu tens muitas outras, e eu nada tenho! |
Nelson | Dá-me aqui, eu escondo! |
Professor | Seus moleques! Entreguem-me já isso, ou eu os levo para o hospício, para junto dos outros! |
Mecânico | Preciso disso. Dou-lhes outra coisa para brincarem. |
Ana | Precisa? Para que? Vocês não sabem onde encaixar essas coisas! |
Nelson | Eu sei, eu sei onde ele vai enfiar isso! |
Professor | Deixai já de brincadeiras! |
Mecânico | Pronto, peguei! |
[Toma a corrente; Ana o olha com tristeza, Nelson com raiva; Ana tira do bolso uma engrenagem e a acaricia] | |
Ana | Diz, o que vais fazer com isto? |
Nelson | Tu sabes onde isto se encaixa? |
Ana | [mostrando] Vê: aqui há um buraco. Em que eixo ele se encaixa? |
Nelson | Este buraco é quadrado. Eles são tão imbecis que vão procurar um eixo quadrado para encaixar aí. |
Ana | Não, ele não é tão tolo assim. Sabe que é preciso enfiar aí um cilindro. |
Nelson | Ou um cone. |
Ana | Ou enfiar esferas negras como jabuticabas, que cairão uma a uma, transformadas em cerejas. |
Nelson | Não! Uma cenoura! Uma banana! |
Ana | Enquanto você não colocar seu nariz e sua língua na máquina, ela não funcionará. |
Nelson | Vocês dividiram as peças por suas funções, e não pelas cores. Está tudo errado. Não vêem que a seqüência de montagem é preto - branco - cor-de-pavão - vermelho ? |
Ana | É preciso unir o duro ao mole, o quente ao frio, o áspero ao liso... |
[Nelson salta sobre Ana e tenta tirar-lhe a roupa. Ela ri. Marta e Anita se retiram. O Mecânico consegue separar os dois.] | |
Mecânico | O que faço com eles, senhor Professor? |
Professor | Devemos levá-los para o hospício. Mas antes seria conveniente bater-lhe. Não por maldade ou vingança, é claro – isso seria irracional – mas sim porque a psicologia demonstrou que o castigo evita erros futuros. Reforço negativo, você sabe. |
[Entram o Mestre e o Banqueiro; o Mecânico os cumprimenta com a cabeça e sai levando Ana e Nelson.] | |
Mestre | Boas noites. Íamos passando, resolvemos entrar. |
Professor | Boas noites. Estejam à vontade. |
Banqueiro | Desejava saber em que estágio se encontra o empreendimento da construção de nossa máquina, senhor Professor. |
Professor | Não muito avançado. A motivação é grande, mas as dificuldades imensas. É um projeto que exige o máximo de nossos conhecimentos científicos. |
Banqueiro | Mas o resultado compensará o esforço e os gastos? Toda a aldeia está desviando seu trabalho no sentido de cooperar com o projeto. Isso pode levar a sérios prejuízos econômicos e sociais, se durar muito tempo. |
Professor | Não se pode apressar a evolução natural das coisas. Sempre é necessário sofrer por aquilo que desejamos. |
Mestre | Mas dará certo vosso plano de atacar sistematicamente todas as combinações possíveis? |
Professor | Era isto o que estava discutindo com o senhor Mecânico, hoje. Provei definitivamente que o plano é irrealizável. Pois exigiria um tempo total de 325 milhões, 836 mil e 420 séculos, caso empregássemos duas horas e quinze minutos na montagem de cada uma das possibilidades, interrompendo o trabalho oito horas por noite, duas horas para as refeições, e um dia e meio por semana para o repouso. |
Banqueiro | Mas então o projeto é absurdo! Não podemos construir nossa máquina, a não ser por milagre! |
Mestre | Não há milagres, senhor Banqueiro. Só ocorre o que pode ocorrer. |
Professor | Mas tenho outro solução. Não precisamos ir fazendo tentativas cegas. Podemos planejar racionalmente a máquina. |
Mestre | Podemos? Como? Este plano já não era racional? |
Professor | Partiremos de uma análise dos objetivos, e desenvolveremos um estudo teórico que mostrará o modo de atingir-se esse objetivo. Pronta a teoria, podemos passar à prática. |
Banqueiro | Mas quem, de nossa aldeia, é capaz de planejar um invento como este? |
Mestre | Ninguém. Se alguém fosse capaz, seria também capaz de montar as peças. |
Professor | Ninguém. Cada um de nós é incapaz de fazê-lo. Mas uma equipe bem coordenada, auxiliada por calculadoras automáticas, poderá ser bem sucedida. |
Banqueiro | É verdade, professor! Organizaremos uma grande empresa, que desenvolverá o projeto, e contará com apoio da administração local, e financiamento de nossos bancos. |
Mestre | A reunião de centenas de especialistas permitirá a obtenção da grande síntese. |
Professor | Um cronograma de trabalho fixará as etapas a serem atingidas. Começaremos com as pesquisas básicas e com a preparação de técnicos, de mão de obra especializada. |
Banqueiro | E os técnicos assim treinados serão, posteriormente, úteis em outros setores da aldeia! |
Mestre | Mas há uma pequena questão, senhor professor... Nós ainda não chegamos a um acordo sobre a utilidade do grande aparelho! |
Professor | Mas isso pode ser resolvido de modo lógico e científico por uma equipe de especialistas em decisões. |
Banqueiro | Mas tudo isso demorará muito tempo, e gastará muito dinheiro... |
Mestre | Mas nossos netos e outros descendentes poderão usufruir dos resultados. Quantos anos e escravos não foram sacrificados na edificação das grandes pirâmides? Mas valeu à pena, não é? E aí está o resultado, até hoje, para que o contemplemos e admiremos! |
[Desaparecem o Professor, o Mestre, o Banqueiro. Aparecem os três Jograis, com uma grande faixa ou cartazes onde se lê: "Segundo ato: O grande projeto científico-tecnológico para a construção da Grande Máquina". A peça continua, sem interrupção. ] |