A Grande Máquina
Peça teatral em quatro atos
Texto de Roberto A. Martins

TERCEIRO ATO – CENA 1
 
[Aparecem os Jograis, com faixa ou cartazes: "Terceiro ato: o Caos, ou a destruição da Grande Máquina". Em cena, está Asclépio, deitado exatamente na mesma posição do final do segundo ato. Mas, quando se levantar, todos verão que agora é um jovem, de uns 20 anos. Dois dos Jograis, que estão em cena, olham inicialmente para Asclépio. Marta entra, em silêncio, verifica se Asclépio está vivo, e sai.]
Jogral 1 Asclépio dormiu nove meses.
Jogral 2 Asclépio acordou no décimo mês, sacudiu-se e olhou em volta.
  [Asclépio se ergue, acordando]
Jogral 1 E riu um riso amargo, como o de uma hiena.
  [Asclépio ri]
Jogral 1 Depois de acordar, Asclépio soube que Anita já se casara, com o Mecânico.
Jogral 2 E Asclépio riu, riu um riso amargo, como o de uma hiena.
Jogral 1 Na face de Asclépio estava agora gravada a caricatura do riso.
Jogral 2 O desprezo por si mesmo, por todos, pelo mundo.
TERCEIRO ATO – CENA 2
 
[Saem os Jograis; entra o Mestre, envelhecido.]
Mestre Bons dias, Professor!
Asclépio Oi, Mestre. Como está tudo por aí, hoje, na cidade?
Mestre Tudo bem. E ainda estará melhor quando tu voltares a lecionar e a trabalhar na construção da Grande Máquina, agora que estás recuperado.
Asclépio Eu esperava que você tocasse nesse ponto. Para mim, não há mais máquina.
Mestre O que? Meu Deus, o que aconteceu?
Asclépio Homem, chega de brincadeiras. Tudo isso foi uma grande farsa, e ela já não me interessa.
Mestre Creio que é melhor conversarmos em outro dia, senhor.
Asclépio Por que não agora? Sinto-me muito bem, esteja certo disso. Nunca estive tão lúcido quanto agora. Estava louco, como muitos ainda estão, mas já estou desperto.
Mestre A máquina não te interessa mais? O que te motiva, agora? Qual foi a mudança de valores?
Asclépio Valor? Nada, Mestre. Nada. Nada tem valor, nada me motiva. A partir de agora, viverei com meu rosto desnudo frente ao absurdo que forma este mundo. Criamos para nós mesmos deuses, mitos, ideais. Mas nada é válido, nada tem sentido.
Mestre Senhor Asclépio, nós o ouvimos muitas vezes defender suas idéias. Posso descrevê-las de cor: O objetivo máximo do homem é a felicidade; e tu queres ajudar nossa cidade a atingir esse objetivo. A felicidade é obtida quando a vida não apresenta mais problemas. E para resolver os problemas infinitos e mutáveis que nos cercam, é necessária a inteligência. O aumento da inteligência trará a felicidade. Por isto, é válido e importante construir-se a máquina que vosso grupo idealizou. Cá para mim, continuo achando que nossos problemas poderiam ser resolvidos se pudéssemos entrar em contato com o outro mundo; mas respeito e admiro o vosso trabalho.
Asclépio "Aumenta o conhecimento, e aumentarás a dor..." Nunca ouviu isso? Olhe, Mestre, felizes são os imbecis, não os inteligentes. Bem-aventurados os tolos, pois para eles isso aqui é o reino dos céus.
Mestre A história da humanidade é a história da evolução do pensamento e da inteligência...
Asclépio E da evolução das guerras, da exploração do homem, do aumento de sua capacidade de fazer o mal, de seu egoísmo.
Mestre ... libertando-se de seus instintos, de suas necessidades animais, em direção a uma vida cada vez mais espiritual.
Asclépio Libertando-se? Libertando-se de seus instintos? Não, Mestre. Os instintos e as necessidades estão aí, ainda. Talvez disfarçados, mas estão aí. O que nos move, a todos nós? Certamente não é a razão. Pois gastamos muitos dias nos convencendo de que algo é bom e válido, e depois não o fazemos. Fazemos o que nossos apetites nos mandam. Nossos interesses mesquinhos e egoístas, que nada são além de instintos disfarçados. Por que eu me interessava pela Grande Máquina? Altruísmo? Não. Vaidade, e instinto gregário. Queria companheiros, como os animais também buscam companhia. Só isso.
Mestre Espero que o senhor esteja pelo menos disposto a continuar lecionando.
Asclépio Claro que sim. Sabe por que? Porque me dá prazer mostrar que sei mais do que os alunos. Porque gosto de humilhá-los e fazê-los sofrer, estudando, e tremer, frente aos exames. Sim, continuarei a ser professor. Mas agora lecionarei a história da humanidade. A verdadeira história, a da evolução do erro e do absurdo. Farei com que vejam o que é o homem, na realidade – essa máquina absurda e sem sentido, mas dotada de consciência, e cuja conquista suprema é descobrir que é um absurdo. Farei com que eles desprezem a humanidade, tanto quanto os médicos nos odeiam, porque nos conhecem, e a si mesmos, e a mim, que me odeiem porque os odeio e quero destruir-lhes o paraíso.
TERCEIRO ATO – CENA 3
 
[Enquanto Asclépio está falando, entra Anita; ouve o final da fala, e entende a posição de Asclépio.]
Anita Você poderá destruir tudo, Asclépio. Pode provar que não prestamos, que somos estúpidos, e que a máquina é impossível de ser montada. Mas havia uma certa beleza em sua idéia antiga, e isso não existe mais. Era bela a sua dedicação, o seu entusiasmo. Agora, o que sobrou em você? Mas você não pode destruir o passado e a beleza que conseguimos perceber.
Asclépio E daí? Faz alguma diferença a beleza? É consoladora, mas é mais importante não mentirmos a nós mesmos.
  [Fitam-se rapidamente. Anita volta-se para o Mestre.]
Anita Mestre, há pessoas que o procuram. Chegou um homem do outro mundo.
Mestre Não diga! Há quanto tempo não recebíamos coisa alguma de fora!
Anita É um louco.
Mestre Era de se esperar. Ninguém atravessa o grande pântano sem enlouquecer. Mas o que ele trouxe?
Anita Nada.
Mestre Nada? Isso nunca aconteceu. Ninguém vem para cá, a menos que seja mandado. E quem é enviado traz necessariamente alguma mensagem.
Anita Ele nada trouxe.
Mestre Peça que o tragam até aqui, por favor. [Anita sai. O Mestre fala a Asclépio:] Estranho isso, não é?
Asclépio Alguém se perdeu, e veio até cá.
Mestre Sim, poderia ser. Mas não gosto disso. Jamais ocorreu, antes.
Asclépio Agora aconteceu. Incomoda-nos uma quebra de nossos hábitos mentais, não é? Mas o mundo não quer saber se nos incomoda. Ele está aí, ele faz o que quer.
Mestre Vê: chegou. Aproxima-te!
TERCEIRO ATO – CENA 4
 
[Entra Rômulo.]
Mestre Parece não trazer coisa alguma. Diz-me, tu nada trouxeste para nós? Nenhuma mensagem do outro lado?
Rômulo Trouxe tudo de que vocês precisam.
Mestre Onde está, então?
Rômulo Aqui. [Não se move]
Mestre [Aproximando-se e revistando Rômulo] Não... nada, aqui. Já devem tê-lo revistado, antes. É um idiota.
Asclépio Você está muito mais limpo do que qualquer outro que já chegou até aqui. De onde veio?
Rômulo Da rua.
Mestre Não, idiota. Antes disso, onde estavas?
Rômulo Em outra rua.
Mestre É inútil. Vamos colocá-lo junto com os outros.
Asclépio Ainda há lugar para mais um, no hospício?
Mestre Bem... O velho hospício desabou há três meses, com umas chuvas. Os insanos estão instalados, provisoriamente, em uma ala do museu.
Asclépio No museu! Mas não vão destruir tudo?
Mestre Não há perigo. Estão ocupando salas quase vazias. Lá só existem as antigas peças da Grande Máquina, que já foram suficientemente estudadas e reproduzidas, e podem ser estragadas à vontade.
Asclépio Gostaria de rever a máquina.
Mestre Não há muito o que ver. Tudo enferrujado e gasto.
Asclépio Enferrujado, quebrado... não faz mal. Não é tudo assim mesmo? Sob uma aparência limpa, tudo podre. Sob uma casca lisa, víscera desarranjadas. Pelo menos poderei ver algo autêntico: uma coisa realmente suja e gasta, que ninguém tenta ocultar. Aí está a beleza: na coragem de exibir a feiura. Pois todos somos seres feios, horríveis. Diga-me, Mestre, já observou com cuidado um homem nu? Existe algo mais feio do que os órgãos sexuais? Duvido que haja coisa mais desagradável. Mas todos nós os temos, não é? Somos todos iguais, aqui! Melhor seria exibir essa feiura, do que escondê-la.
Mestre Senhor Asclépio, vou-me embora. Seria bom que repousasse um pouco...
Asclépio Chocou-se? Não faz mal. Vamos até o museu, levar este novo morador?
Mestre Em outro dia. Outro dia. Agora, vou andando. Passar bem, senhor...
TERCEIRO ATO – CENA 5
 
[Saem o Mestre e Rômulo. Asclépio fica só, zombeteiro. Volta-se para a platéia.]
Asclépio Estou muito agressivo, não é? Estou aborrecendo todo o mundo. E daí? Eles também me aborrecem. Com sua mediocridade e cordeirismo. Conhecem a estória do lobo que se vestiu com a pele de cordeiro? Pois é: alguns se esqueceram que eram lobos, ao ver o próprio reflexo na água. E depois de algum tempo, quando entrou no rebanho um novo lobo com pele de cordeiro, descobriu que todos eram como ele. Todos gostam de ocultar de si próprios o que realmente são. Alguns nem mesmo sabem o que são. 
     Vocês aí também me aborrecem. Povo de minha aldeia! Vocês são uns estúpidos, é o que eu acho. É uma sorte que eu esteja aqui, no palco, e vocês na platéia. Posso dizer o que penso, e vocês ainda me pagam para insultá-los. Se estivéssemos cara a cara, na rua, você acha que eu poderia falar isto? Aqui posso. Estúpidos! Sei que nenhum de vocês vai subir para brigar comigo. Nem vai ficar indignado e sair. Porque isso tudo é uma peça, não é? Quem me agredir será preso, porque só estou dizendo o que está no texto aprovado pela censura. Por isso, posso chamá-los de imbecis. Para vocês, o que interessa é o papel, o documento da censura, não é? Não interessa se realmente quero agredi-los. Vocês podem se justificar assim: "Eles nos agrediram só de brincadeira". Não é não, estúpido! É pra valer! 
     O que são vocês? São cascas. São invólucros, aparências cuidadosamente construídas e mantidas. Máscaras. As roupas para esconder o corpo nojento. A pintura no rosto para esconder as rugas, os buracos e as manchas. A peruca. Os cílios postiços. O teatro, de vez em quando, para criar uma casca cultural e esconder o vazio humano. Por que estão aí sentados, ao invés de fazer algo útil? São passivos. O que interessa é sentar-se bem comportado, com ar inteligente, tomando cuidado para não bocejar, arrotar, nem peidar, não deixar o ar escapar por nenhuma extremidade, para que ninguém perceba que por dentro você está podre, está em fermentação, ou está cheio de refrigerante. 
     E o que eu acho de mm? Outra bosta. Sirvo-me desta casca de ator para agredi-los. Também tenho um intestino cheio de comida decomposta e de cocô. E urina. E estou suado e fedendo. Alguém quer me cheirar? Não? Vocês só querem me ver e ouvir, de longe, não é? É muito mais higiênico, mais civilizado. Quem quer me lamber ou tocar? Ninguém? Então, não há nada a fazer senão continuar com a peça. Senão fica feio, né? Se eu parar aqui a representação e for embora, o que vocês vão achar? Moderno? Avançado? Uma babaquice? 
     Olhem, eu acho que já pagamos o dinheiro de vocês. A gente podia parar, agora. Mas aí a estória não termina, não é? E a história terminou? A vida de vocês acabou? Sua vida tem mais sentido do que tudo isso que lhe mostramos? Se tivesse, você não estaria aqui, querendo se esquecer um pouco de sua vida. Vocês querem que a peça tenha um sentido, um fim, para preencher o nada de vocês, para completar a história incompleta de vocês próprios. 
     Está bem. Eu vou continuar. Porque acho que vocês são tão desprezíveis que merecem o que desejam. 
     Onde parou a peça? Ah, eu queria ir até o museu, e o Mestre não quis me levar. Esperei uns dias, e fui até lá. Aí vou eu. [Anda pelo palco] Já cheguei.
TERCEIRO ATO – CENA 6
 
[Aparecem Ana, Nelson, Rômulo e os outros loucos.]
Asclépio Olha aí os malucos.
  [Os loucos não estão parados; estão realizando ações contínuas, semelhantes a rituais, que se adaptam às falas seguintes de Asclépio. No entanto, embora Asclépio descreva tudo o que eles fazem como negativo, deve haver algo de belo e estranho nos loucos. Em cena, estão as 4 caixas da Grande Máquina.]
Asclépio [continuando] Vocês acham que existe aqui alguma coisa interessante para ver? Tem nada, não. Os loucos são pessoas chatas e sem graça, como nós. Ficam repetindo ações monótonas, chatas e sem graça, durante um longo tempo. Como você, quando põe em prática seus hábitos de ler jornal, ou assistir televisão. É monótono. Sempre as mesmas emoções. Ou quando se masturba. Uma ação monótona. Os movimentos rítmicos são muito comuns, entre eles e entre nós. A música e a dança se originaram daí, da mesma fonte que o ato de mamar. 
     Os loucos gostam muito, também, de babar e colocar coisas na boca. Chupam o dedo, ou qualquer coisa redonda. Eles usam qualquer coisa, e é desagradável de se ver; não é como o cigarro, que todo mundo vê e não acha feio; nem parece um substituto dos peitos da mamãezinha que desmamou vocês muito cedo. 
     De vez em quando um louco faz algo interessante, diferente. As crianças também. É porque nem mesmo sabem repetir as nossas rotinas. São máquinas estragadas. Fazem coisas curiosas, como as que podem surgir quando se dá uma tela e tintas a um macaco, ou quando se bate ao acaso nas teclas de uma máquina de escrever. Dessas falhas, dessas irregularidades, nasce a evolução humana. A genialidade é só isso: o surgimento de coisas que não estão no ritmo natural, constante. Nós, os bem comportados, tomamos a loucura e a sistematizamos em uma nova monotonia. Assim evoluímos. Aqui vocês vêem a si próprios. Suas sombras, o resíduo infantil de todos nós, aquilo que desejamos ocultar de nós mesmos. Vejam: eu vou tomar esse negócio do maluco. [Tira um objeto de Nelson; o louco tem reação bipolar de raiva e medo, de agressão e fuga.] Viram? Chora e grita, tenta atacar e sente medo. É uma criança. São vocês mesmos. Vocês não sentem raiva do que fiz? Vocês se identificam com os loucos! Ou então, comigo, o que seria pior ainda. Eu sou um filho-da-puta. Se vocês não ficam com raiva de me ver sacanear esse pessoal, é porque vocês são tão filhos-da-puta quanto eu. 
     Eu prefiro os que se identificam com os doentes mentais. Possuem menos barreiras, menos proteções, uma casca mais fina. Estão mais perto de nossa verdadeira natureza. A mente deles é um caos, mas pelo menos não é monótona. Olhem, todos nós nos vestimos do mesmo modo, não é? Se eu fosse louco, poderia ter uma aparência diferente, como aquele ali. Eu poderia vestir a camisa como calça, a calça como camisa, e colocar a cueca na cabeça, como gorro. Que tal? É feio? É diferente, não é? Não está de acordo com as regras. Pois é assim que deve ser. Quero despertar vocês.
TERCEIRO ATO – CENA 7
 
[Entra Anita, um pouco antes do final do monólogo de Asclépio, e fica observando.]
Asclépio [notando sua presença:] Oi, Anita! Venha cá. Está me procurando?
Anita Não. Vim vê-los. [aponta] Aproveitei porque sabia que você estava aqui.
Asclépio Por que? Tem medo? São tão inofensivos que andam livremente pelas ruas. Não há o que temer. O que tememos é a nossa própria sombra, não a deles.
Anita Não, eu não tenho medo deles. Eu gosto dos loucos. Gosto de observá-los, e tentar sentir o mistério de suas ações. Sinto-me tão próxima a eles... Mas o meu marido não gosta que eu venha aqui. Fica preocupado. Por isso, vim hoje, que você está aqui. [Rômulo está soprando bolhas de sabão] Olhe, que linda aquela bolha de sabão!
Asclépio É, bonito. As cores são o resultado da interferência luminosa nas paredes da película transparente.
Anita Ela cresce, cresce, incha... Sabe, eu tive um sonho, nesta noite.
Asclépio É?
Anita A bolha me recordou a sensação que tive, certa hora. Quer ouvir o sonho?
Asclépio Pode contar, eu vou tentar interpretar.
Anita Neste sonho... 
     Eu estava andando pelas ruas de uma cidade. Talvez seja esta, ou outra qualquer. Muita gente em volta, andando como sonâmbulos, como todos nós andamos. Surdos e cegos. Movidos por seus hábitos, fazendo tudo mecanicamente. Nem sei se são seres humanos ou máquinas, robôs. 
     Eu também caminho, mas quero parar. Quero acordar, e dizer-lhes que despertem, que acordem, que olhem em volta, e que vejam que existe a beleza e existem as outras pessoas. Quero mostrar-lhes que é possível agir despertos. Que toda ação ou trabalho pode ser feito com beleza e amor, por mais simples que seja.  Quero para-los, falar-lhes, gritar-lhes isso. Mas também eu caminho, sem conseguir parar. Caminho todo o dia. Estou exausta. Ando e não consigo fazer o que preciso fazer. Meu corpo dói, estou angustiada. 
     Anoitece, e estou em um subúrbio da cidade. Sento-me na sarjeta, não sei o que fazer. Estou vazia. Há uma criança suja e linda, ao meu lado esquerdo. Acaricio sua cabeça, mas ela salta, corre à minha volta várias vezes, rindo-se, como se zombasse de mim, mas não fico com raiva. Depois, saltando, vai embora. Levanto-me e a sigo. 
     Agora, estou fora da cidade. caminhando pelo mato. Caminho às cegas, não sei onde está a menina, e não sei o que fazer. Paro em uma clareira. Tudo está escuro e amedrontador. Estou só, cercada por árvores mudas, mas que gemem e murmuram. Olho para cima, e vejo o céu. As estrelas brilhando. As estrelas! As minhas estrelas! É o lugar que quero atingir. Mas estão longe, piscando, tão sós quanto eu própria... 
     De repente, sinto que meu corpo incha, vai crescendo como uma bolha de sabão, minha cabeça vai subindo, passa acima do topo das árvores! Estou enorme e brilhante! Estendo os braços, fico na ponta dos pés, e a ponta de meu dedo toca uma estrela. 
     Há uma explosão de cores e luzes em volta de mim, um mergulho e uma queda, um atordoamento e um despertar ou adormecer. Vejo-me caída, deitada na clareira. É dia, há um Sol lindo no céu, e à minha frente existe uma trilha que atravessa a mata. Levanto-me, contente, e caminho por ela. Não sei para onde ela me leva, e não importa, o que interessa é andar por ela. Ela é bonita. Já não há angústia ou tensão. Estou em paz, e desperto. [pausa
     Foi este o sonho, Asclépio.
Asclépio Você não sabe o que o sonho significa? A interpretação é muito clara.
Anita Não, eu não sei. Sei que tudo pareceu vir de longe, de um lugar que nem sei de onde conheço, de outra realidade. Sei que o sonho me pareceu muito importante, e por isto eu o escrevi. 
Asclépio Sim, vem de um lugar distante... de seu inconsciente. O final do sonho, sabe, é muito simples. Você incha, se torna brilhante, sua cabeça sobre, e atinge as estrelas. E isso resolve o problema. Sabe o que é isso? Freud explica. Vamos. Você sabe. O que é que sobre e incha, aumenta de tamanho? Aí está, eu nem precisaria dizer. É o falo, o pênis, o pau de um homem. Sabe a origem da palavra "falo"? Significa brilhante, luminoso. A ereção faz com que você atinja as estrelas, e quando você as toca, atinge o orgasmo. Depois disso, está leve e relaxada. Não pensa mais em nada. Caminha sem direção, e não tem mais problemas.
Anita E você acha que é só isto o que a gente contém? Só sexo?
Asclépio O que mais? Só os instintos são fundamentais. O resto é casca, é invólucro.
Anita Mas o sonho era tão lindo... me pareceu tão importante, senti-me tão pura...
Asclépio Atrás dessa pureza, há a natureza, o sexo. Os instintos.
Anita Mas a tentativa de abordar as pessoas na rua, e mostrar-lhes a beleza neles mesmos, no que fazem, no mundo... O que significa isso? Há algo oculto aí, também?
Asclépio É a insatisfação infantil, o desejo de retorno ao paraíso. Lembra-se da menina do sonho? Eu sei o que você sentiu, pois eu também já senti isso. Vou lhe contar outra história, esta é minha. 
     Era uma vez uma criança. Ela era, como todas as crianças, muito desastrada, e nada sabia fazer, direito. Os pais e os irmãos mais velhos zombavam dela. Ela percebeu que nada sabia fazer. Que a beleza e a perfeição estavam longe ela. Achou que só os adultos sabiam fazer as coisas certas, perfeitas. 
     Então, ela foi crescendo. Resolveu que, quando fosse grande, seria como seus pais e irmãos. Mas continuava sem saber fazer algo que o satisfizesse. Já com 14 anos de idade, começou a descobrir que muita gente mais velha do que ele tampouco sabia fazer algo. E se tornou crítico, e sua crítica se voltou agora para fora. E suas primeiras vítimas foram os que estavam à sua volta. Seus irmãos e seus pais. Viu que eles eram fantoches imperfeitos e feios, que o haviam enganado. Que nem eram movidos pelo amor e pela beleza, nem produziam essas coisas. Tentou desculpá-los, mas não conseguiu. E explodiu o ódio contra a farsa em que vivia. Veio a desilusão e o desprezo pelos que pactuavam com a imperfeição e a feiura. Abandonou a casa, e procurou outros ídolos. Conheceu muitos, e destruiu a todos. Não encontrou quem pudesse admirar. Então ele voltou as costas à humanidade, e gritou: "Vocês não prestam! Seus merdas, vocês não amam a beleza e a perfeição! Vocês não sabem fazer nada, vocês não são nada, seus putos!" 
     Decidiu isolar-se da sociedade. Mas ainda acreditava em si próprio, e acreditava que fosse possível atingir o cume da montanha. O mais duro despertar foi aquele em que entendeu que era como os outros. Mas não quis fingir. Procurou então os párias, os imundos, os que não fingiam saber algo, e uniu-se a eles. 
Anita E depois?
Asclépio Depois, nada. Não há mais nada. Ele encontrou a verdade sobre o homem, e chegou ao fim da picada. Você ainda não chegou.
Anita Talvez esteja perto disso. Perto demais, Asclépio. Mas não há nada além disso? 
Asclépio  Outra interpretação? Você vê outra?
Anita Não. Talvez seja só isso.
Asclépio Você não pode esperar algo mais bonito de mim. Aqui também não há beleza, há baixeza e ódio. Se você quer outra interpretação, deve pedi-la a outro tipo de pessoa. Aquele louco, por exemplo. [aponta Rômulo] Veja suas roupas, que interessantes. Dizem que é um artista, que faz coisas bonitas.
Anita Não zombe, Asclépio!
Asclépio Falo sério! Não estou zombando. Venha cá, você! [Rômulo se aproxima] Qual é o seu nome?
Rômulo Não quero dizer. Você não entenderia.
Anita Já ouvi o nome. Não o chamam de Rômulo?
Rômulo É, o pessoal me chama de Rômulo.
Asclépio Ouça, Rômulo: Anita teve um sonho, e quer saber o que significa. Quero que você a ajude a entendê-lo. Conte, Anita.
TERCEIRO ATO – CENA 8
 
[Anita fica em dúvida. Rômulo chama os outros loucos para perto, e eles se acercam. Anita se decide:]
Anita O sonho foi assim:
  [Ouve-se a voz de Anita, gravada, repetindo o mesmo sonho. Rômulo a toma pela mão, e junto com ela e com os outros loucos interpreta – teatralmente – o sonho, sem dizerem uma palavra. Ao final, Anita e Rômulo se abraçam, e saem caminhando, devagar, até saírem de cena. Os loucos aplaudem, e Asclépio fica inicialmente com cara de imbecil. Os loucos mostram uma nova faixa: "Quarto ato: a montagem da Grande Máquina", e saem de cena.]


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