A Grande Máquina
Peça teatral em quatro atos
Texto de Roberto A. Martins

SEGUNDO ATO – CENA 1
 
[Os três Jograis]
Jogral 1 Instituiu-se o centro de pesquisas para a construção da Grande Máquina.
Jogral 2 A fim de determinar a finalidade do aparelho, foi nomeada uma equipe de especialistas em decisões.
Jogral 3 O primeiro passo era decidir o objetivo da Grande Máquina.
Jogral 2 Mas antes disso era necessário definir o método a ser empregado nas discussões.
Jogral 1 A equipe de especialistas em decisões instituiu um grupo de estudos de teoria das decisões.
Jogral 2 Para integrar o grupo foram convidados os filósofos, sábios e políticos da aldeia.
Jogral 3 O primeiro passo, agora, era decidir qual o critério para se escolher um objetivo.
Jogral 2 Mas antes disso era preciso decidir quais os valores em que se basearia a escolha do objetivo.
Jogral 1 O professor interveio, e demonstrou que não se podia exigir uma fundamentação de tudo.
Jogral 3 Era preciso partir de um acordo preliminar tácito e convencional sobre os valores adotados.
Jogral 2 A comissão, a fim de verificar os valores a serem adotados, fez um plebiscito.
Jogral 1 A pesquisa de opinião permitiria estabelecer uma base sobre a qual todos concordassem.
Jogral 2 Não houve pontos em que todos concordassem.
Jogral 1 Formaram-se partidos na aldeia, cada um defendendo sua opinião sobre a utilidade da Grande Máquina.
Jogral 3 Houve debates públicos e comícios.
Jogral 2 Houve brigas e violência
Jogral 3 A ordem foi perturbada, e a polícia proibiu discussões públicas.
Jogral 1 Criou-se uma Academia em que se permitia a apresentação de teses a respeito da teoria de valores.
Jogral 3 Lá se discutia, racionalmente e sem brigas, a utilidade da Grande Máquina.
Jogral 2 O professor propôs que, paralelamente, fossem realizadas as pesquisas científicas necessárias, e se tratasse da formação de técnicos e especialistas.
Jogral 1 Para isto, foi criada uma Universidade.
Jogral 3 Nela se pesquisava sobre tudo.
Jogral 1 Pois enquanto não se chegasse a um acordo sobre o objetivo, toda pesquisa era considerada importante e valiosa.
Jogral 3 Lá se ensinava de tudo.
Jogral 2 Pois todo conhecimento podia ser importante na construção da Grande Máquina.
Jogral 1 Pesquisava-se a influência do teor protéico da mandioca na cor dos ovos das galinhas d'Angola.
Jogral 2 Pesquisava-se a variação anual do número de lagartixas no museu da aldeia.
Jogral 3 Pesquisava-se as conseqüências teóricas da possível existência de anjos que não soubessem matemática.
Jogral 1 Ensinava-se a história do descobrimento da aldeia.
Jogral 3 Ensinava-se regras de pontuação e acentuação de uma língua pré-histórica chamada "capui". 
Jogral 2 Ensinava-se o modo de calcular o número de disposições possíveis de todos os aldeões em torno de uma mesa triangular.
Jogral 1 Aos poucos tudo se normalizou, e foi estabelecido um ritmo constante de trabalho.
Jogral 2 Os debates da Academia eram nos sábados à noite.
Jogral 3 As aulas durante as manhãs dos dias úteis.
Jogral 2 As pesquisas , nas tardes desses dias.
Jogral 3 Ninguém tinha pressa, pois se confiava na inevitabilidade da vitória.
Jogral 1 Todos confiavam nos membros da Universidade e da Academia, mas sabiam que a máquina demoraria a ser construída.
Jogral 3 Passaram-se três anos e foi diplomada a primeira turma de professores.
Jogral 1 Passaram-se quatro anos, e formou-se a primeira turma de filósofos.
Jogral 2  Passaram-se cinco e seis anos, e formaram-se os primeiros engenheiros e médicos.
Jogral 1 Passaram-se oito anos, e formaram-se os primeiros grupos de contestadores na aldeia.
Jogral 3 Criticavam a Academia e a Universidade, e diziam que nada seria obtido.
Jogral 2 Passaram-se nove anos, e o professor convocou uma assembléia geral da comunidade.
Jogral 1 E discursou assim:
  [Jogral 3 lê o discurso, imitando de forma caricatural os modos do professor:]
Jogral 3 Excelentíssimas autoridades aqui presentes; colegas da sagrada Academia e da venerada Universidade; senhoras; senhores. Há muitos anos atrás, uma esperança de renovação agitou esta aldeia. A chegada de três caixas com peças e engrenagens, hoje enferrujadas e lançadas ao museu, trazidas do outro mundo por dois loucos, deu-nos a esperança de montar a Grande Máquina que quebraria as nossas barreiras e nos colocaria em contato com o novo mundo. Até hoje, não atingimos esse objetivo. Em parte, porque o caminho é longo. Não podemos eliminar esse problema, que advém da própria natureza das coisas; mas poderíamos contar um segundo: as lutas e dissidências que consomem grande parte de nossas energias. Se há posições divergentes, proponho que cada partido congregue seus adeptos e se lance à construção da máquina que almeja. Todos os grupos poderão utilizar os conhecimentos da Universidade. Ao invés de nos atrapalharmos mutuamente, trabalhemos cada qual por seu ideal. Quanto a mim, todos já sabem: meu objetivo é construir um aparelho capaz de modificar a mente humana e tornar-nos tão inteligentes quanto os computadores eletrônicos, a fim de assim atingirmos a felicidade. Convido todos os que aceitam esse ideal a unir-se a mim e trabalhar nesse projeto grandioso. E sugiro que todos os de opiniões diversas se congreguem em grupos semelhantes, e trabalhem por suas idéias.
Jogral 2 Metade da população achou correta a proposta do Professor.
Jogral 1 A outra metade a achou absurda.
Jogral 2 Pois temiam que alguns dos grupos pudessem utilizar os conhecimentos da Universidade para projetos maléficos.
Jogral 1 O próprio objetivo do Professor não era aceito pela maior parte das pessoas.
Jogral 3 Mas o Professor formou um grupo de trabalho secreto.
Jogral 2 Quarenta e duas pessoas uniram-se ao professor para construírem a máquina de modificar a mente humana.
Jogral 1 O trabalho foi planejado e distribuído.
Jogral 3 Alguns cumpriam suas incumbências; outros, não.
Jogral 1 Alguns desistiram. Outros ficaram. 
Jogral 2 Várias vezes o plano de trabalho foi modificado, para tornar-se adequado aos membros do grupo e às novas descobertas.
Jogral 3 Pareciam progredir aos poucos. Mas muitos desistiram.
Jogral 1 Seis anos após o início do grupo secreto, havia 12 pessoas com o professor.
Jogral 2 Reuniam-se nos horários planejados e faziam o que estava previsto.
Jogral 1 Tudo era feito com seriedade.
Jogral 3 Após mais três anos, havia 5 pessoas com o Professor.
Jogral 2 Eram Marta, o Mecânico, e outros três aldeões.
Jogral 1 Certo dia, esses três foram conversar com o professor, fora do horário de reunião.

 

SEGUNDO ATO – CENA 2
 
[Surge o Professor; os três Jograis se transformam nos três aldeões, que vão falar com ele.]
Aldeão 1 Sabe, Professor... nós três vamos ter que nos separar do grupo. Nada temos contra o projeto, ou contra o senhor. Ainda acreditamos que o mais nobre de todos os objetivos é esse que animou o nosso trabalho durante esses nove anos.
Aldeão 2 É isso mesmo, Professor. Às vezes desanimávamos, e queríamos desistir, ser apenas pessoas comuns, como os outros da aldeia, que por nada lutam. Mas ao conversar com o senhor, voltava nosso ânimo. Sentindo suas idéias, parecíamos participar de um outro mundo, de uma sociedade já renovada. Isso nos fazia prosseguir.
Aldeão 1 Embora tenhamos resolvido deixar por enquanto o grupo, não consideramos perdido todo esse nosso trabalho. Alguém prosseguirá. Quem sabe, com outras pessoas, será possível recomeçar...
Aldeão 2 Eu soube que o Eletricista estava pensando em entrar no grupo. E o Sorveteiro também, acho.
Aldeão 1 O grupo não vai morrer. Mas cada um de nós tem seus problemas. Eu não tenho tido tempo para me dedicar à minha família, e vejo que a única coisa que posso abandonar, para que me sobre tempo, é a nossa obra. Se eu ainda fosse solteiro, seria fácil... Não posso deixar de trabalhar, preciso ganhar dinheiro. Se esta nossa obra fosse remunerada, e tivéssemos condições de nos dedicarmos só a isso...
Aldeão 2 É claro que eu não devo me intrometer em sua vida particular, Professor. Mas acho que também o senhor deveria pensar mais em sua família. Não vê que Anita espera até hoje que se complete esse nosso estudo, para poder se casar com o Mecânico?
Aldeão 3 Todos nós estivemos lutando para nos mantermos unidos. Mas é difícil. Ele [aponta para o 2°] tem sido muito criticado no trabalho, pelos colegas que não concordam com nosso plano.
Aldeão 2 É claro que não foi isso que me desanimou. Mas essa doença, que tive há pouco tempo, me enfraqueceu muito. E atualmente não me sinto capaz de fazer coisa alguma, exceto cumprir as obrigações em casa e no emprego. Quem sabe, quando me recuperar, talvez possa entrar de novo no grupo...
Aldeão 3 Sabe, Professor... a coisa mais importante para nós sempre foi esse projeto. Eu muitas vezes sacrifiquei outros interesses, o senhor sabe disso, pela nossa obra. Foi a primeira coisa em minha vida que realmente valorizei. Mas vejo que é tudo tão difícil, que me sinto sem forças... E agora, para me sentir feliz, preciso fazer algo que só dependa de mim, e que eu consiga realmente levar até o fim, sozinho. Algum objetivo próximo, palpável, e não tão obscuro como este nosso. Por isso, resolvi fazer o curso de Direito, na Universidade. Acho que é melhor. Pelo menos, vou conseguir chegar ao fim. Eu não havia contado nada a vocês, mas já fiz o vestibular, e fui aprovado. E preciso de todo o tempo livre, para estudar. Mas continuo interessado no projeto, e podem contar comigo, sempre que for necessário. Só não posso mais participar constantemente das reuniões, mas continuo com o projeto, em espírito.
  [Os Aldeões vão se afastando, lentamente, do Professor.]
Aldeão 1 De qualquer forma, ainda restam Marta e o Mecânico.
Aldeão 2 Sim. Podem recomeçar o grupo. Atrair mais pessoas.
Aldeão 3 Estamos com vocês. Podem contar conosco.

 

SEGUNDO ATO – CENA 3
 
[Os aldeões somem de cena. Durante o monólogo, fica iluminado apenas o Professor.]
Professor  Um é desviado por interesses mais palpáveis: pela família. Outro é derrubado pelo esforço e engolido pelo dragão do desânimo. O terceiro escapa para uma solução individualista: vai ser advogado. Se não são esses os motivos, serão outros, e pouco importa. Todos se vão. [pausa
Esta não é a primeira vez que isso me acontece. Em outros tempos, foram outras pessoas, situações diferentes. Mas dá tudo no mesmo. O mundo é monótono. [pausa
De uma vez, queríamos fazer um jardim – mas não uma pequeno recanto, e sim cobrir essa montanha inteira com sombras, com verdes, com flores. [pausa
De outra vez, íamos conseguir distribuir em um só dia pirulitos de apito a todas as crianças da aldeia, e à noite fazer dançarem ciranda todos os adultos, a noite inteira, todos eles dançando, de tal forma que ninguém tivesse vergonha, nem pudesse no dia seguinte esquecer-se ou fingir que se esquecera de tudo. Nem houvesse mais jeito de voltar atrás e destruir o passado, pois lá estariam os palitos dos pirulitos, e as solas gastas dos sapatos, e as marcas da dança no chão. E então, todas as semanas, seria repetida a festa dos pirulitos. Outra vez iríamos construir uma jangada, com troncos de palmeira e latões vazios de óleo, e atravessar toda a costa do continente, comendo o peixe que arrancássemos do mar e o arroz que plantaríamos no mastro, e que serviria também de vela. Contaríamos histórias de serpentes e de fadas, em todos os portos onde parássemos, houvesse ou não gente a escutar. [pausa
De todas as vezes, fiquei sozinho. E para que eu construiria um lindo bosque na montanha, sozinho, se depois teria que inundá-lo de lágrimas, em minha solidão? Para que fazer bailarem as pessoas, se eu não estivesse com elas? Para que enfrentar o mar escuro e atravessar a grande água, se nela ou fora dela não encontrasse companheiros? Agora, mais uma vez, o sonho se cansou.

 

SEGUNDO ATO – CENA 4
 
[Aparecem, devagar, os Jograis. O Professor vai caindo lentamente ao chão.]
Jogral 1 Morreu uma alma.
Jogral 2 Terminou uma esperança.
Jogral 3 O anseio antigo se quebra.
Jogral 1 Não há mais planos.
Jogral 2 Não restaram ideais.
Jogral 3 Tudo deu no vazio.
Jogral 1 Quem sabe, recomeçar de novo?
Jogral 2 Cale-se! Chega de tentar!
Jogral 3 Quem sabe, com outros companheiros...
Jogral 2 Deixe! Liberte-se da ilusão!
Jogral 1 Carregou nas costas os pecados do mundo.
Jogral 3 viveu a vida do homem-herói.
Jogral 1 Sofreu a sina dos abandonados.
Jogral 2 Basta, desejos impossíveis!
Jogral 3 Chega de lutar, de lutar, de lutar...
Jograis Não vou mais lutar pela máquina!
SEGUNDO ATO – CENA 5
 
[Aparece Marta.]
Professor Marta, minha amiga: o pescoço e os ombros me doem. As costas estão gastas e dobradas, não consigo endireitar-me e erguer o rosto. Faça-me um favor: um pouco de massagem, aqui, até amolecer esse músculos tensos, até afrouxar a máscara de meu rosto, até que saia daqui este peso, até que eu possa dormir um sono sem sonhos.
  [Enquanto o Professor fala, Marta se aproxima. Massageia-o um pouco, ele se deita; ela continua mais um pouco. Ele parece adormecer. Marta o examina, como se estivesse vendo se morreu. Afasta-se dele e se dirige ao público. ]
Marta Asclépio dormiu.
Jogral 1 O Professor Asclépio adormeceu, abandonando a luta.
Marta Asclépio dormiu. Estava cansado.
Jogral 1 Também ele é fraco. Também ele se cansou.
Marta Asclépio nada pode fazer só.
Jogral 1 Todos têm sua desculpa. Também ele tem uma.
Marta Asclépio lutou mais do que qualquer outro.
Jogral 1 Por um sonho tolo, que agora abandonou.
Marta Não, por um sonho de grandeza, que não traiu.
Jogral 1 Que traiu agora, pois está dormindo sem sonhos.
Marta O sonho que era dele, pois empenhou nele dezoito de seus anos!
Jogral 1 Mas ele matou esse sonho, Marta, por fim ele o matou!
  [Marta se volta, com ódio, para o Jogral 1. Pausa. Depois volta-se de novo para o público. Os Jograis também vão até o proscênio, e fitam o público.]
Marta Sim, é verdade. Asclépio é fraco. Asclépio abandonou a luta, e não voltará a ela. Ele foi vencido, sim. Mas digam-me vocês: quem lutou mais do que ele?
Jograis Quem é melhor do que Asclépio? Você? [repetem várias vezes, ao público]
Marta Talvez você nunca tenha abandonado um sonho, porque nunca teve um.
Jograis Você já tentou construir a Grande Máquina? [repetem]
Marta Você nem mesmo por um instante abraçou uma luta de grandeza. Dos que já quiseram construi-la, quem não abandonou a máquina? Quem não a traiu?
Jograis Você acaso vive seu sonho? [repetem
Marta Quem não desistiu da máquina?
Jograis [do palco, ou invadindo a platéia:
Você, também, deu mais valor à sua vidinha burguesa. 
Você se sentiu só, e buscou o calor da massa medíocre. 
Você desistiu, porque viu que era fraco, e que o sonho era maior do que você. 
Você quis ser diferente dos outros. Desejou subir, pensou em romper as barreiras, desejou atingir o novo mundo. Mas recuou, e está aqui. 
Você recuou, fugiu, e tentou se esquecer de tudo, fingir que jamais tivera sonhos, ou que eles nada valiam. 
Você está afundado na mediocridade, mentindo a si mesmo, aceitando mentiras dos outros, fingindo não ter se traído.
Marta Quem não desistiu da Grande Máquina? 
[gritando:] Traidores! Assassinos de suas almas! Vermes filhos da puta!
  [Os Jograis e Marta se retiram rapidamente. Entram na platéia outros atores, distribuindo pipocas, durante o intervalo.]

 Se esta peça for encenada de forma correta, não haverá aplausos do público.

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