A Grande Máquina
Peça teatral em quatro atos
Texto de Roberto A. Martins

QUARTO ATO – CENA 1
 
[Fica em cena apenas Asclépio, pensativo, saindo do Museu.]
Asclépio Creio que ela achou o que queria. Vocês devem saber que os loucos possuem uma força extraordinária. Além disso, os que não são impotentes são verdadeiros garanhões. Ela vai chegar facilmente às suas estrelas.
  [O Mecânico está parado, em um canto; Asclépio se aproxima dele.]
Asclépio Quem não vai gostar disso é o Mecânico. Olá! Escute, você é impotente?
Mecânico Não estou entendendo.
Asclépio Você funciona? Ou é "brocha"?
Mecânico Você resolveu encher o saco de todo mundo, não é?
Asclépio Sabe que Anita está sexualmente insatisfeita? E que agora deve estar trepando como louca, com um louco?
Mecânico Você não tem mais nada a fazer? Vá inventar estórias em outro canto. Não venha me colocar mais problemas na cabeça, porque já tenho muitos.
Asclépio Bem, se preferir não acredite. Até logo.
  [Asclépio sai.]
QUARTO ATO – CENA 2
 
[O Mecânico fica parado, no mesmo lugar, imaginando o que pode estar acontecendo. Pensa que o Professor quer apenas enganá-lo, mas de vez em quando começa a ter ciúmes e a temer que seja verdade. A luta interna se manifesta em seu rosto. O Mecânico ficará visível, parado, pensando, até a cena seguinte.]
  [Enquanto isso, na outra metade do palco, passa-se uma cena entre Anita e Rômulo. Ouve-se uma gravação com suas vozes, com as falas abaixo, enquanto aparece a representação muda do ritual de iniciação entre eles, em um palco vazio, e ao mesmo tempo a projeção de imagens do mesmo ritual realizado por eles ao ar livre, no campo. ]
Anita Vamos, faça algo bonito. Quero aprender a fazer o que você faz.
Rômulo Você não pode fazer o que eu faço. Pode fazer o que você faz.
Anita Faça qualquer coisa, quero ver.
Rômulo Está vendo isto? O que é?
Anita É um tubo.
Rômulo Não. é Uma montanha. Você não vê corretamente. Tente de novo.
Anita Agora você já disse, é uma montanha.
Rômulo Mas você não viu isso. E já não é mais, ou melhor, não é só isso. O que mais é? 
Anita Não sei. Acho que é um bonito tubo enferrujado.
Rômulo Não vê estas cascas? É o tronco de uma árvore!
Anita Sim, tem alguma semelhança. Mas para que serve esta brincadeira? Qualquer resposta vale?
Rômulo Claro que não. Isto não é um lago. Mas é a sua coluna vertebral.
Anita Já sei... isto é uma cobra! [apalpa e sente o tubo]
Rômulo Isso! Você já está entendendo!
Anita Não, não estou entendendo... mas agora me parece um peixe... essas são as escamas... um peixe que vai saltar da água!
Rômulo Exatamente!
Anita É uma coisa incompreensível: é uma montanha, é uma serpente, é uma árvore...
Rômulo É o arado que fecunda a terra. Trate-o com carinho. O mundo inteiro depende dele.
Anita Como cuidar dele?
Rômulo É preciso untá-lo com manteiga ou saliva, e esfregá-lo bem.
Anita E o que faremos com ele?
Rômulo Agora que você o conhece, podemos fazer algo. Em que posição ele deve ficar?
Anita De pé, é claro.
Rômulo Sim. Mas não na vertical. Inclinado para o Norte.
Anita A base está ligada à terra...
Rômulo No topo há o verde...
Anita Acima há as nuvens, que cercam o cume!
Rômulo Dentro, há o fogo sagrado, que brota de sua ponta.
Anita Lindo! Lindo!
Rômulo Tronco divino, seja-nos propício.
QUARTO ATO – CENA 3
 
[Somem Rômulo e Anita. O Mestre se aproxima do Mecânico.]
Mestre Senhor Mecânico, estamos seriamente preocupados com sua esposa.
Mecânico Sim? O que foi? Asclépio andou lhe contando besteiras, também?
Mestre Asclépio? Não. É que eu a vi brincando junto com um louco. Enterravam um tubo velho no chão, e o cobriam com folhas e flores. E ela parecia estar gostando daquilo, levando a sério.
Mecânico Ora, isso não tem nada demais.
Mestre Bem, só queria avisá-lo. Passar bem. [O Mestre sai.]
QUARTO ATO – CENA 4
 
[O Mecânico fica pensando. Anita e Rômulo se tornam novamente visíveis, no mesmo lugar. Depois de algum tempo o Mecânico, sai para procurar Anita. Passa por perto de onde ela e Rômulo estão, sem vê-los. Enquanto isso, Anita e Rômulo representam uma cena de solidão e busca mútua. São projetadas as imagens correspondentes, e ouve-se a gravação das vozes.]
Anita Esta esfera oca é a lua
Rômulo É um poço, também. Em seu fundo existe água.
Anita Mas não tem fundo. É um túnel sem fundo, a alma da Terra, em cujo fundo se vê o céu.
Rômulo É uma boca. Eis os dentes.
Anita Ela engole a alma dos mortos.
Rômulo É uma gota de água do mar.
Anita É uma concha. Nela existe uma pérola.
Rômulo Há tesouros brilhantes, lá dentro.
Anita Sua superfície está porejada de gotas de suor.
Rômulo Ela engole essas flores azuis.
Anita Aqui está um espelho. E ela é o seu próprio reflexo.
QUARTO ATO – CENA 5
 
[Rômulo e Anita continuam visíveis. O Mecânico e Asclépio entram em cena, de pontos diferentes, e se encontram.]
Mecânico Eu fui procurar Anita, e não a encontrei.
Asclépio Ela estava no museu. Deve estar lá perto.
Mecânico procurei por toda a cidade, e não a vi.
Asclépio Vamos procurá-la, juntos. Eu sei onde ela está.
  [Saem Asclépio e o Mecânico.]
QUARTO ATO – CENA 6
 
[Continua a cena de Anita e Rômulo. Eles se encontram, e seus braços e mãos começam a se ligar. Ao mesmo tempo, são vistas as projeções das imagens e ouvem-se as gravações de suas vozes.]
Anita Esta corrente transmite o movimento de um lado para o outro.
Rômulo É a ponte de energia entre o Céu e a Terra.
Anita O Céu fecunda a Terra com a chuva que desce.
Rômulo Desce por um tubo de luz uma cadeia de flocos de cristal.
Anita Da Terra crescem as flores, que agradecem aos Céus a chuva.
Rômulo Sobem vapores, e a água retorna ao Céu.
Anita Céu e Terra estão interligados e unidos.
Rômulo Isso são os ramos e as raízes que se espalham e ligam a árvore ao mundo.
Anita É a luz que liga nossos olhos.
QUARTO ATO – CENA 7
 
[Rômulo e Anita continuam visíveis. O Mecânico e Asclépio entram em cena, juntos, e passam por perto de Anita e Rômulo, sem vê-los.]
Asclépio Onde podem ter se metido?
Mecânico É estranho... deveriam estar aqui! Sinto que estão próximos. Mas não os encontro.
  [Mecânico e Asclépio saem]
QUARTO ATO – CENA 8
 
[Continua a cena de Rômulo e Anita, que se beijam, no prosseguimento do ritual, com projeção de imagens e vozes gravadas.]
Anita Quem é ele?
Rômulo Este, a quem coloco no alto e adoro, é o Sol. Veja como brilha. É de ouro vivo. [Uma roda ou engrenagem]
Anita Sinto o calor de seus raios em mim... não posso tocá-lo, ele me queimaria!
Rômulo Ele a ferirá e matará se você se aproximar dele de modo incorreto. Você deve se aproximar pela frente. E adorá-lo, antes de tocá-lo.
Anita Senhor, amigo, meu calor, fonte de meu fervor! Aqui estou eu, e quero mergulhar em sua luz, e receber e sentir pulsar em mim sua energia! Seja-me gentil, pois sei que pode destruir-me!
Rômulo Os outros que o vêem podem não reconhecê-lo. Vamos mostrar quem ele é. Vamos colocar seus raios, que fazem brotar a erva dos campos.
Anita Seus raios são feixes de trigo.
Rômulo Seu brilho são as flores brancas que brotam de sua face.
Anita Ó Sol, meu deus, não há outro mais belo!
Rômulo Ele nos sorri, vê? Ele nos agradece nosso carinho. Já o adoramos. Até logo, mestre e amigo!
Anita Até logo, meu Senhor!
QUARTO ATO – CENA 9
 
[Em cena, Anita e Rômulo param de beijar-se. Separam-se um pouco, dão-se as mãos, e caminham pelo palco, amorosos. A projeção e a gravação terminaram. Anita separa-se de Rômulo e examina as coisas que estão à sua volta. Eles falam, em cena:]
Anita Estou entendendo cada uma das peças... mas isso são partes. E a máquina completa? Não podemos construir a Grande Máquina?
Rômulo A Máquina! Você quer montá-la?
Anita Sim, queria. Gostaria de ver o conjunto, a unidade.
Rômulo A máquina! Você quer montá-la! Há quantos séculos esperei por este dia, o dia em que encontraria uma companheira para a Grande Obra! A partir de agora, você terá um novo nome: vai se chamar Iza. E este nome significará: "Aquela que busca o Infinito".
Iza Iza... eu me chamo Iza!
Rômulo Estou aqui há tanto tempo, apenas para montar a Grande Máquina... e só agora alguém me pede isso... nós a montaremos, Iza.
Iza Vamos reunir todas as peças!
Rômulo Sim, vamos correndo. Hoje mesmo ela estará pronta!
Iza Por que você ainda não a montou?
Rômulo Não posso fazer isso sozinho. Duas pessoas precisam morrer para montá-la. Uma só não poderia.
Iza Então, vamos morrer? Mas eu quero viver!
Rômulo Não tente entender e parar o movimento! Vamos!
Iza Vamos!
  [Iza e Rômulo saem.]
QUARTO ATO – CENA 10
 
[Entra o Mecânico, pensativo e cansado; em um canto, surgem Ana e Nelson; estão agachados.]
Mecânico Já quase terminou a noite, e não os encontrei... Parece que se evaporaram, ou passaram para uma outra dimensão. É como se... sei lá o que está acontecendo...
Ana [sussurrando] Mecânico!
Nelson [sussurrando] Ouça!
Ana Nós vimos os dois!
Nelson Estavam no museu!
Mecânico Mas como!? Passei por lá várias vezes! Estavam escondidos?
Ana Não.
Nelson Sim.
Ana Estavam lá.
Nelson Junto ao saguão.
Mecânico Lá no saguão do museu não há lugar onde eles pudessem se ocultar. Eu os teria visto.
Ana Eles não quiseram ser vistos por você.
Nelson Estavam reunindo todas as peças da Grande Máquina.
Ana Eles vão montá-la.
Nelson Ou já montaram.
Mecânico Se ela está lá, vou buscá-la.
Ana Não vá.
Nelson Asclépio está lá.
Ana Ele os observa.
Mecânico Anita não veio para casa, esta noite. Não vou ficar esperando. Vou procurá-la.
Ana Anita não existe mais.
Nelson Mas quando ela morreu, nasceu Iza.
Ana E em breve não terá mais nome.
  [Entra Asclépio, pensativo.]
Asclépio Eu os vi, Mecânico. Estão no Museu.
Mecânico E o que estão fazendo lá? Por que não trouxe Anita?
Asclépio Nem pensei nisso. Só fiquei observando. [pausa] Estavam montando a Grande Máquina.
Mecânico E o que me interessa isso? Você se esqueceu de que estávamos procurando Anita para trazê-la de volta para casa?
Asclépio Ela certamente não viria, a não ser a força. E isso eu não faria.
Ana Ela não viria, a não ser a força.
Nelson Mas isso Asclépio não faria.
Ana Foi por isso que ele os viu.
Mecânico Vou até lá. [O Mecânico sai.]
Asclépio Que coisa estranha estavam fazendo... tudo loucura, mas não consigo parar de pensar nisso, é como se houvesse um sentido...
Ana [do escuro] Havia um sentido.
Nelson Faziam coisas estranhas.
Asclépio Tratavam as peças com carinho, conversavam com elas e as uniam de acordo com regras absurdas... pela semelhança de gosto, de textura, de forma...
Ana As peças estão vivas.
Nelson Eles lhes deram almas.
Asclépio Adicionaram flores, e depois começaram a colocar-se no meio da própria montagem... prendiam peças ao corpo, e entravam no mecanismo...
Ana Eles fazem parte da máquina.
Nelson É tudo uma só coisa.
  [Nelson e Ana somem.]
QUARTO ATO – CENA 11
 
Asclépio Passaram horas assim sem perceber que eu os observava, ou talvez sabendo. Não crio que as conexões que fizeram possam funcionar, mas tudo isso me deixou impressionado. Gostaria de entender... é como se houvesse algo oculto, por trás disso...
  [Entra o Mecânico, devagar, carregando uns papéis. Pára.]
Mecânico Asclépio!
Asclépio Não os encontrou?
Mecânico Não... não estavam lá.
Asclépio Você deve estar cego!
Mecânico Mas havia algumas coisas escritas, por lá... nas paredes, em um papel, no chão e em uma folha seca. Parecia escrito com sangue. Era a letra de Anita.
Asclépio E o que estava escrito?
Mecânico Eu os copiei. Ouça: 
     "A obra está completa. A união foi perfeita, e agora o que está dentro é como o que está fora." 
     "Aproxima-se a grande luz. Eu tremo de medo, de ansiedade, e no entanto vou a seu encontro. Ela me queima, me destrói, e agora eu também sou luz." 
     "Agora começa tudo. A grande caminhada em direção à outra margem, que consegui antever. Não serei serpente, cavalo ou leão. Aquilo que não tem nome, isto serei." 
     "Já deixo este mundo. Adeus, meu Mecânico! Adeus, Asclépio, Marta, Anita. Sigo meu sonho, e caminho em direção à mata e às estrelas."
QUARTO ATO – CENA 12
 
[Aparecem Nelson e Ana.]
Nelson Atravessaram a barreira.
Mecânico Foram para o pântano!
Ana A Grande Máquina desapareceu.
Mecânico Foram-se! Anita enlouqueceu totalmente!
Asclépio Não creio. Não, nenhum dos dois está louco. Não são como nós, mas não são loucos.
  [Entra Marta; o Mecânico não os ouve, em sua dor.]
Marta O que aconteceu com Anita?
Asclépio Ela e Rômulo passaram a noite montando a Grande Máquina. E montaram. Agora, atravessaram a fronteira.
Marta Mas não devem estar longe. Não se pode impedi-los?
Asclépio Não. Não podemos alcançá-los, Marta. Olhe, deixe-me tentar explicar. Acho que estou entendendo. Não compreendo os detalhes, mas sei que eles estão mais corretos do que nós todos. Veja, Marta, eles em um dia conseguiram o que eu sempre desejei! Aquilo que eu julgava impossível, eles o fizeram. Atingiram a perfeição e a beleza, e, por meio disso, a felicidade.
Marta Mas como conseguiram isso?
Asclépio É complicado demais, ou simples demais, para se entender conceitualmente. Eles usaram as partes da mente e do corpo que nunca pensei em utilizar. Usaram o inconsciente, as emoções, as intuições. Usaram suas bocas, sua pele e cabelos. Usaram tudo para montar a Máquina, e agora estão libertos. Rômulo talvez já o fosse. Agora, Anita também está. Anita, não. Foi Iza quem se libertou.
Marta E o que é a Máquina?
Asclépio Ela não tem importância, e não existe, sem eles. Somente sua construção importa. E cada pessoa precisaria descobrir como montá-la.
Marta Você estava certo, então, sobre a finalidade da Máquina?
Asclépio Não, eu não a entendia corretamente. Agora acho que a compreendo, mas posso dizer muito pouco. Ela serve para unir ao universo, ela permite participar das energias e da grande evolução cósmica. Ela destrói a estagnação, quebra as barreiras e leva ao novo mundo.
Mecânico Só o que sei é que estão longe. Seguiram seu sonho, e ultrapassaram a fronteira. Talvez estejam mortos. Ou enlouqueceram, agora.
Marta Você não acredita nisso. Finge acreditar, mas não crê. Você pensa que estão loucos, desde o início.
Mecânico Talvez. Mas se eles voltassem eu tentaria entendê-los.
Marta Entendê-los como Asclépio?
Mecânico Talvez. [pausa] Ou talvez como Yuri.
Marta Yuri?
Yuri Sim. Este é o meu nome.
Asclépio "Se eles voltassem..." Para que pensar nisso? Tivemos uma oportunidade, e não aprendemos tudo o que podíamos.
Marta Eles voltarão. Eu sei.
Asclépio É bom sonhar.
Marta Um dia, eu gritarei: "Eles voltaram, Asclépio!"
QUARTO ATO – CENA 13
 
[Entram os três Jograis]
Jograis Eles voltaram, Asclépio!
Asclépio Quando? Onde estão?
Jogral 1 Rômulo e Iza.
Jogral 2 Chegaram à aldeia.
Marta Como estão eles?
Jogral 1 Felizes.
Jogral 3 Poderiam estar diferentes?
Jogral 2 Penduraram à janela do Mestre uma linda pedra, envolta em cipós e flores vermelhas.
Jogral 3 Eles trazem notícias do outro mundo.
Asclépio O que dizem eles de lá?
Jogral 1 Dizem que não existe.
Jogral 2 Que todo o universo está aqui.
Jogral 3 Que não há pântano a atravessar.
Yuri Isso não é possível. E todos os loucos que já vieram até aqui?
Jogral 1 Rômulo diz que não são loucos.
Jogral 2 E que jamais vieram de lugar algum.
Jogral 3 E, de fato, eles são como nós.
Yuri Mas onde estão eles? Quero vê-los, quero ver como está Anita.
Jogral 1 Anita morreu.
Jogral 2 Esqueça-se dela.
Yuri Quero entendê-los. Quero que me guiem e me mostrem o seu mundo.
Jogral 1 Podemos levá-lo.
Jogral 2 Mas eles não guiarão.
Jogral 3 Certamente que não.
Yuri Serão capazes de me desprezar, assim? Olhem, é preciso dizer-lhes que só desejo aprender, que nada de mau tenho contra eles.
Jogral 1 Podemos dizer-lhes.
Jogral 2 Mas eles nada ensinarão.
Jogral 3 Certamente que não.
Yuri Terei me enganado com eles? Como podem deixar de aceitar-me? Digam-me, eles têm raiva de mim?
Jogral 1 Não, eles não tem.
Jogral 2 Eles gostam de você.
Jogral 3 Ficarão felizes por vê-lo.
Yuri Então, por que não poderão me dar a felicidade, se eles a atingiram? Por que não me guiam, por que não me ensinam a ser como eles? 
  [Entram Iza e Rômulo.]
Rômulo Se não existe um guia, como pode haver alguém guiado?
Iza Se não há o que aprender, como poderíamos ensinar?
Rômulo Nós nada temos, a não ser amor.
Iza Dê-me um abraço. Nada mais nos peça. [Abraça Yuri.]
Rômulo Você de nada precisa.
Asclépio É bom vê-los de volta. Somente agora entendi o que vocês fizeram.
Iza E o que fizemos? 
Asclépio Não adianta explicar. Se eu tentar, vocês vão me deixar confuso, e dizer que não é. Mas não é preciso explicar. Está tudo certo. Vocês montaram a Grande Máquina.
Marta Onde está ela?
Rômulo Aquela? Aquela não interessa mais.
Marta Onde vocês a deixaram?
Rômulo Ela está aqui.
Iza Há outras a montar. A aldeia está cheia de coisas e de pessoas desconexas.
Rômulo Não há um fim, no tempo.
Iza A montagem deve prosseguir, sempre nova, a cada instante, com novas pessoas e novas peças.
Rômulo Vi sempre-vivas perto do chiqueiro. E uma linda garrafa quebrada ali fora.
  [Saem os Jograis,  Rômulo, Iza. Vão para a saída do teatro, onde ficarão "brincando" com flores, peças, etc. Yuri pensa um pouco, depois os segue.]
QUARTO ATO – CENA 14
 
[Marta e Asclépio estão em cena. Silêncio. ]
Marta Por que não vai junto?
Asclépio Estou pensando.
Marta Mas você sabe que não basta pensar.
Asclépio Eu sei. Mas estou pensando.
Marta Você não quer aprender com eles?
Asclépio Sim. Quero.
Marta Não quer. Não pode.
Asclépio Eu quero.
Marta Não. Não é capaz. Não adianta.
Asclépio Por que não?
Marta Porque você os entendeu. Segui-los, agora, não seria uma loucura. Seria jogar com cartas marcadas.
Asclépio Sim. Eu compreenderia o que ocorresse. Mas ficaria de fora.
Marta Isso não seria honesto.
Asclépio Isso não funcionaria. Isso... sei lá. De fato, não posso ir com eles. Para isso, precisaria entrar em sua loucura, e não consigo. Só consigo entendê-los e admirá-los.
Marta Sim. Eu também não posso ir.
Asclépio Você é minha irmã. É como eu.
Marta Sim. Pensamos do mesmo modo. Não daria certo.
Asclépio Mas muita gente pode ir.
Marta Sim. Muitos dos que estão aqui. Podemos pelo menos mostrar-lhes isso. Também é um papel bonito, não é?
Asclépio [Dirigindo-se ao público:] Vocês todos, o que estão fazendo aí?
Marta Amigos, vocês estão no lugar errado. O lugar certo é lá fora.
Asclépio Iza e Rômulo estão lá na saída do teatro, brincando.
Marta Quem quiser, pode ir ter com eles, e brincar com eles. Verdade, qualquer um pode.
Asclépio Não é verdade. Olhem: não é qualquer um que pode ficar com eles.
Marta É preciso julgá-los loucos. É preciso duvidar do que eles fazem. É preciso não ter entendido o que Asclépio disse.
Asclépio É preciso não acreditar que essa brincadeira vai levá-los a coisa alguma.
Marta E, no entanto, é preciso achar linda essa loucura.
Asclépio E mergulhar nela, de corpo e alma.
Marta Todos os que puderem, vão embora, por favor.
  [Acendem-se as luzes da platéia.]
Asclépio Só fiquem os que concordarem comigo. Os que concordam que deveriam ir embora, mas não podem fazê-lo.
Marta Só fiquem aqui os que são incapazes de brincar.
Asclépio Como nós.
Marta Como nós. [grande pausa] E esse pessoa? e nós?
Asclépio O caminho de Rômulo nos está vedado.
Marta Existe outro?
Asclépio Tão direto quanto este, não.
Marta Existe outro? [pausa]
Asclépio Acho que não. Mas de qualquer forma, podemos ajudá-los, falar sobre eles, conseguir levar a eles mais pessoas. 
Marta Se você não os entendesse...
Asclépio Não é possível seguir esse caminho, se ele é compreendido e reduzido à razão.
Marta Se houvesse outro caminho, absurdo...
Asclépio Só a fé no absurdo pode levar à libertação.
Marta [alegrando-se] Há alguém que podemos seguir.
Asclépio Quem?
Marta Uma pessoa em quem não confiamos. Cujas idéias e métodos são absurdos, e a nada podem levar.
Asclépio Há muitos assim. Mas nós não seremos capazes de ir atrás deles, porque somos racionalistas. Você seguiria o Mestre, por exemplo? 
Marta Não. Mas há pelo menos um que conseguiríamos seguir.
Asclépio Duvido.
Marta É Asclépio.
Asclépio Eu? Como posso seguir-me a mim próprio?
Marta Você pode. E deve.
Asclépio Não sei se estou entendendo... [começa a alegrar-se]
Marta Nem eu. Mas veja que idéia estranha me ocorreu: nós sabemos que você tem sido um perfeito idiota, e a nossa situação atual, incapazes de seguir Rômulo, é a melhor prova disso.
Asclépio De acordo.
Marta Nós chegamos à conclusão de que o raciocínio não é o caminho da felicidade.
Asclépio Concordo.
Marta Então, não adianta continuar a fazer o que você sempre fazia.
Asclépio Exatamente!
Marta E por isto queremos mudar. Vamos fazer algo absurdo, ao invés de sermos racionais. E o absurdo que vamos fazer será o de sermos racionais até as últimas conseqüências!
Asclépio E isso não pode levar a coisa alguma! [abraçam-se.]
Marta Não é lindo, isto? Não é este o nosso caminho?
Asclépio É muito bonito... e é a única saída.
Marta Errado. Não temos saída alguma. Estamos perdidos.
Asclépio Então, mergulhemos de cabeça nisso!
Marta De corpo e alma!
Asclépio Vamos até o fundo dessa coisa sem fundo. Vamos desenvolver em nós o raciocínio, a inteligência, e ajudar os outros a fazerem o mesmo, embora sabendo que isso não conduz à felicidade.
Marta Sim. E como seria absurdo que isso levasse à felicidade, é claro que conduzirá. 
Asclépio É claro. E como é claro, não dará certo.
Marta [Para o público:] Pessoal! A peça terminou.
Asclépio Não vamos mais representar. Terminou o espetáculo. Chega de teatro. Agora, a gente tem mais coisas para fazer.
Marta Pode ser que alguns de vocês tenham achado uma piração muito louca essa nossa conversa final.
Asclépio Quem quiser participar dessa piração, fique aqui para conversar conosco. Os outros podem sair.
Marta Fique quem, sem entender bem, queira seguir conosco esse sonho.
Asclépio Só fique aqui, agora, quem quiser participar, conosco, da construção da Grande Máquina.
  [Aparece um cartaz: "Reunião do grupo de estudos da Grande Máquina: aqui, agora". Marta, Asclépio e outros fazem uma reunião com os interessados, enquanto Rômulo, Iza, Yuri, Ana e Nelson brincam com os que quiserem segui-los, em qualquer lugar.]

 FIM
Se esta peça for encenada de forma correta, não haverá aplausos do público.

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