A INFLUÊNCIA DO TEATRO NO ATOR
Roberto A. Martins

Escreve-se muita coisa sobre a função ou papel do Teatro. Cada um tem sua opinião a respeito. Aponta-se o teatro político, o teatro religioso, o teatro de denúncia e o teatro das telenovelas como os caminhos corretos. Para não fugir à regra, vou também falar sobre esse assunto. Com uma pequena particularidade: quero examinar a utilidade que o Teatro tem para o ator, não para o público.

É muito simples apresentar um julgamento cínico daquilo que atrai o candidato a ator: poderíamos dizer que ele é levado ao palco pelo desejo de fama, ou que se torna ator para ser aplaudido. É claro que isso pode ser verdade; mas não é toda a verdade – é uma solução simples demais. O futuro ator vê e admira a atu-ação (a ação do ator) em si, independentemente de conseqüências sociais como prestígio ou dinheiro. Este será o ponto de partida para a minha análise.

No teatro de tipo clássico, a atuação se divide em vários elementos: "absorção" ou "vivenciação" do personagem; memorização da peça (com falas, marcações, atitudes, gestos, sentimentos); e representação. Em uma boa peça clássica, o valor da re-presentação (ou seja, da ação em que uma cena é repetida, frente ao público) depende muito dos outros dois fatores. Se o ator não consegue se identificar com o seu personagem, dificilmente conseguirá fazer uma representação convincente, pois pequenos gestos, expressões e tons de voz estranhos à situação contrariarão as falas e gestos gerais decorados. E, por incrível que pareça, esses detalhes são notados, inconscientemente, pelo público. Aliás, para que uma pessoa decore bem um papel, ela deve, segundo o sentido original da palavra de-cor-ar, aprender pelo coração.

Pode-se imaginar que, tendo o ator absorvido a personalidade desejada, ele não precisa de texto ou orientação; poderia dar asas à imaginação e ir criando enquanto se apresenta. Como "criatividade" é uma palavra mágica que abre todas as portas e bocas e resolve todos os problemas, hoje em dia, parece ser uma boa idéia que o ator "crie" a peça. Isso já foi tentado. Um grupo europeu que tentou utilizar essa técnica não conseguiu senão produzir montagens medíocres, apesar de possuir bons atores. De fato, se a pessoa adquire a mentalidade do personagem, ela pode, com grande esforço, agir coerentemente com seu "papel"; mas também nós, em nossa vida real, temos uma personalidade mais ou menos fixa e agimos de modo mais ou menos coerente – e nem por isso as coisas todas que fazemos tornam-se geniais ou dignas de serem apresentadas. Os melhores escritores conseguem produzir uma boa peça em algumas semanas de trabalho. Seria preciso um deus para criar uma, de igual nível, durante a própria apresentação.

Numa boa peça clássica, nada aparece por acaso – todos os pequenos detalhes se encaixam, de forma a produzir o efeito desejado pelo autor. Essa perfeição pode não corresponder à vida como ela é – mas é muito mais eficiente, como meio de transmissão de conteúdo; e, além disso, quem aprecia "a vida com ela é" não precisa ir ao teatro – pode divertir-se e aprender observando o comportamento dos outros, na rua, ou entre seus amigos.

Por isso é importante, numa boa peça, que o ator consiga não só viver o papel mas também aprender a peça como ela é (como ela foi criada pelo seu autor e/ou mentalizada pelo diretor).

Agora examinemos o que um bom ator de gênero clássico obtém, em que tipo de animal ele se transforma, ao sofrer a influência de sua própria arte.

Desenvolvendo a capacidade de vivenciar qualquer papel, o ator desenvolve sua sim-patia – a capacidade de compartilhar sentimentos alheios. Ao bom ator, nada do que é humano pode ser estranho. Ele consegue assim uma modificação espiritual: uma grande maleabilidade emocional, que lhe permite adaptar-se a situações novas e a novas pessoas. Consegue viver muitas vidas em uma só, e assim sua experiência se enriquece. Um ator, ao se recordar de um papel que interpretou, considera-o mais real do que qualquer outra passagem de sua vida. Para uma pessoa comum, surgem de vez em quando as lembranças do tempo em que era estudante, ou de quando trabalhava em um escritório, ou de quando teve sua primeira experiência sexual. Para o ator, surgem de vez em quando as lembranças do tempo em que era César, Mefistófeles, Jocasta ou Sade. Creio que nem se pode comparar nossas experiências imperfeitas e pobres, pouco arrojadas e limitadas, com as que o bom ator pode vivenciar. São níveis de vivência diferentes.

Ao absorver seu papel e o desenvolvimento da peça, o ator adquire o hábito de uma ação coerente com seus motivos, conscientizar todos os impulsos, observa as ações das outras pessoas, e age "desperto". Em nossa vida comum, não temos tempo e hábito para pensar no que fazemos a cada instante. No teatro, cada ação ou palavra é utilizada conscientemente pelo ator, mesmo que o personagem seja uma pessoa comum, "adormecida". Se o ator consegui transferir para a sua vida ordinária essa preocupação constante, ele se tornará consciente de tudo o que faz, observará a importância de cada ato, de cada palavra, de cada posição de seu corpo. Estará vivendo cada instante de um modo intenso e desperto, ao contrário de nós. Nós lemos mecanicamente; balançamos ou cruzamos os pés enquanto lemos, sem perceber. Não deixamos as mãos paradas embora elas nada tenham a fazer, e não notamos nossa expressão facial enquanto caminhamos pela rua. No teatro, tudo é importante – como deveria ser no mundo exterior. E a repetição, o hábito, não deveria impedir isso. O ator que, após repetir uma encenação trinta vezes, tiver perdido a consciência do que faz, falhou.

É estranho o efeito que o treino de uma peça, sua de-cor-ação, pode provocar. O ator repete sempre os mesmos atos e falas, que terminam por se tornar espontâneos. Enquanto ouve outro ator falar, ele não fica pensando em como vai interferir logo em seguida. Mas, quando for sua hora, a ação e a fala surgirão, automaticamente, com segurança. Este automatismo, na verdade, surge também na vida real, quando somos sinceros. Com esta diferença: estamos tão absorvidos por nossas ações, que não observamos que elas são tão obrigatórias quanto o são as do teatro. E esta outra diferença: não são tão seguras, sinceras e "corretas" quando no teatro. Não temos certeza, às vezes, de nosso papel diário.

Não notamos que somos verdadeiras máquinas e que, dado o início, dada a partida, tudo o mais é conseqüência. O ator nota sua própria maquinicidade. Está consciente. O que não significa que ele possa se afastar de seu personagem e observá-lo criticamente, rindo-se dele. Ele se observa enquanto atua, com todos os seus sentimentos e pensamentos acompanhando a cena. O personagem luta, sofre, ri – e o ator, com ele, de todo coração, luta, sofre e ri. E, ao mesmo tempo, sabe que aquilo não poderia ser de outra maneira, e consente na ação. Ele sabe que não é ele quem age, mas que a ação se desenrola e ele é uma peça da ação. Ele pode consentir na ação e assim participar do mundo, por sua consciência. Estar consciente é saber participar do que ocorre, não fugir à realidade. E só assim é possível que algum dia nos libertemos e possamos modificar o mundo. Só quando a mente, o espírito, se liga à matéria e consente em ser manipulado por ela e ser empurrado maquinalmente, mas conscientemente, de um lado para o outro, ele pode dominar a máquina e fazê-la agir. Quem se desliga e afasta da máquina não pode dominá-la.

Estas são, penso, algumas das coisas que um bom ator de teatro clássico pode conseguir – se dominar seu ofício, sua arte, e conseguir transportá-la para fora do palco. O domínio do ofício, em todos os seus detalhes, pode ser obtido apenas por tradição oral e por contato pessoal direto com alguém que tenha obtido esse domínio antes – poucas pessoas conseguiriam resultado tentando desenvolver-se sozinhas; talvez uma o consiga em cada século. A transmissão da arte é incumbência de um diretor, que deve portanto ter passado também por todas as fases, deve ter evoluído pelo caminho do ator e deve ter se tornado um mestre.

O transporte de todo esse aprendizado para a vida é o mais difícil; pois em geral nos fragmentamos em diversos indivíduos – o ator, enquanto estamos no palco; o motorista, enquanto dirigimos; o pai de família, em casa; o amigo, com os amigos – cada papel desses sendo independente dos outros. O transbordamento do aprendizado para fora do palco só pode ser feito se a arte for compreendida, se o ator conscientizar tudo o que faz e se desejar intensamente transformar sua própria vida. E também nisso é quase impossível obter-se algo sem a orientação de alguém experiente, de um alguém que já tenha percorrido o caminho.

Agora voltemos ao candidato a ator. O que ele espero do teatro? Ele deseja ser um bom ator. Normalmente, admite-se isso, mas interpreta-se a frase como sendo a exteriorização de um impulso de vaidade, uma tentativa ridícula de mostrar-se. Isso pode existir (por que não?), mas além disso o apreciador e candidato ao palco percebe uma grandeza, uma superioridade naquilo que os atores que lhe servem de exemplo praticam. Percebe algo de sublime numa boa representação. Percebe que a atuação é grandiosa. E querer transcender-se não é ridículo.

É claro que o futuro ator não conhece e talvez nem compreenda esses detalhes que explicamos. Mas, se tiver o talento adequado, em sua evolução, não poderá ficar satisfeito enquanto não atingir esse estágio e não adotará por muito tempo como guia uma pessoa que não tenha superado esses obstáculos.

O ator, como qualquer outro homem, pode fracassar. Mesmo sabendo que tornou-se um simulacro de Ator, mesmo sabendo que não atingiu algo de superior, ele estaciona. Desiste. E nega a existência de um outro nível de atu-ação. Talvez ele pense que estava enganado, que se iludiu com o brilho que os holofotes lançavam sobre o palco. De fato, ele pode ter-se iludido, tomado como perfeitos aqueles que estavam no início de sua evolução. O que ele percebia era apenas a potencialidade da arte e algumas realizações aproximadas do ideal. Comumente, a transmissão da arte é deficiente, mas o que escapa à deterioração pode dar uma idéia de como seria o estágio mais alto. E é isso o que desperta o espírito e atrai o ator, sem que ele o saiba.

No teatro, como em todas as atividades, existe um aspecto esotérico, um domínio em que poucos penetram e cuja porta só pode ser aberta por dentro, por alguém que já esteja lá. O aprendiz pode andar em círculos, sem conseguir penetrar na fortaleza. Mas nunca ficará realizado a não ser que o consiga. O móvel aparente pode ser a procura da fama, a vaidade. Mas, no fundo, em algum lugar oculto do espírito, na fonte de energia que o move, existe o desejo de ser grandioso, de transcender-se. E o Teatro pode ajudá-lo nisso.

Roberto A. Martins
1974

A GRANDE MÁQUINA
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